quinta-feira, 26 de maio de 2016

Contra fatos, só sentimentos.



Cirene foi uma criança caladinha. Não tinha muito o que falar, só observava mesmo. Crescera assim sem voz, guardando dentro de si a alvorada do mundo. Uma plenitude de emoções infantis, caçula que era, as benesses da família eram para ela.

Casou-se e mudou-se para o país dos espinhos. O noivo, quando passou a ser marido, se transformara em algoz e Cirene suportava os maus-tratos sem emitir reclamação, opinião, suspiros ou lágrimas que escorressem pela terra enunciada impavidez.

Tivera três filhos, dois a menos que sua mãe, que a amavam e para quem ela emitia seu amor em melodias saídas daquela plenitude antiga. Se expressava em cantigas de ninar. Os filhos cresceram e saíram de casa, o algoz falecera e Dona Cirene continuava calada, agora com o peso dos anos emperrando o abrir de sua garganta. Esperava a chegada dos netos, para, quem sabe, voltar às suas canções maternais. Mas, eles não vieram. Tornara-se velha. E doente, pois nada expressara durante o passar dos anos.

Internaram Dona Cirene em um hospital. E ela se sentiu abandonada. Fato consumado. Porém, contra fatos, só sentimentos. Deitada em sua cama na enfermaria, não percebeu a transformação chegando às suas cordas vocais. Estava velha, recebendo parcas visitas de seus filhos, só, sozinha. E a raiva da vida inteira que passou enclausurada transbordou pela sua boca, direcionada aos enfermeiros que a tratavam de maneira cordial.

Dona Cirene se viu reclamando dos procedimentos dolorosos com rispidez e gostou disso. Durante a visita médica, determinava sua alta em alto e mau som. Começou a gritar com todos, a impedir que os outros pacientes descansassem, a praguejar contra os que estavam ali, velha maluca. Expressava em pedras atiradas tudo o que tinha calado no caminhar dos tempos. Para diminuir o desconforto, os enfermeiros saíam de perto o mais rápido possível. Mas, como que numa catarse constante, seus berros saíam cada vez mais estridentes, nada a fazia parar. Dona Cirene era uma velha desbocada, desagradável para as visitas na enfermaria.


Numa noite, ela jogou a bandeja de comida no chão e gritou totalmente destemperada. Foi um tormento para os funcionários do hospital. Gritou que ia embora dali, que não queria miserável nenhum cuidando dela e que preferia morrer a estar junto de tantos burros.  Contra fatos, não há argumentos. E, desta forma, seu pedido foi atendido e sua última visão foi um travesseiro branco empurrado contra seu rosto.

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