terça-feira, 11 de agosto de 2015

Desapego


Ele tirou o chiclete da boca e esticou até arrebentar. Fez uma bolinha e de novo esticou até arrebentar. Ficou repetindo o movimento, displicentemente.  Estava à frente de um coroa que por dezessete anos não tinha estado nem aí pra ele e agora que ia morrer resolveu procurá-lo. Só essa mãe mesmo, de coração gigante, para fazê-lo ir se encontrar com esse canalha egoísta que agora vinha tentando se redimir.  O coroa tentava se entrosar, ele sacou que ele tava ligado nos trend topics da galera. Mas, nem. Quem foi deixado nos braços de uma mulher guerreira sabe muito bem quem é quem.
Sabe o que é preparar presentinhos na escola para o dia dos pais e faltar à creche-escola nesse dia, sendo deixado na casa da vizinha, porque a mãe coragem tinha que trabalhar. Sabe o peso dos presentinhos confeccionados para uma ideia, uma abstração de figura paterna, para um porta-retrato vazio, para um enfileiramento de presentinhos que jamais seriam entregues até o dia do desapego dessa necessidade de acolhimento por um pai de quem ele queria ser espelho. Porque desapego é quando se corta todos os vínculos, todas as conexões.  Desapego é quando se deixa ir, mesmo se tratando de ideias e abstrações. De carência. Mesmo sendo muito novo, jovem, ele deixou ir. Não havia mais laços ideários, nunca houve sequer sentimentalóides. Ele deixou ir porque a vida urgia para ele se fazer, para que ele se construísse com a firmeza de quem sabe que somos todos sós, a vida tatua isso na cara de quem ela esbofeteia.
E o coroa na sua frente na certa deve ter visto algum PowerPoint de carpe diem e encontrou sua mãe pelo Facebook. Deve estar com medo de morrer sozinho, pensou e sentiu vontade de tacar a bolinha de chiclete na palhaça dele. Sentiu raiva por todo o esforço que sua mãe fez sozinha durante seus 18 anos de vida. Pensou em tudo que tinha que estudar para o Enem. Queria garantir um A.
Com toda a sua educação, foi se despedindo. O coroa levantou e forçou um abraço. Pai é quem está junto, quem abraça desde sempre. Ele ficou imóvel. Sua frieza poderia ter congelado o tumor do coroa. O coroa se afastou, ele também, não sorriu. Saiu sem olhar para trás.






domingo, 2 de agosto de 2015

Ela não queria


Ela não queria. Não queria porque ali estavam sonhos de construção de uma vida ao lado de quem amava. Ele era dez meses mais novo que ela, mas ela sentia que ele era um homem bom, aquele em quem podia confiar e que, acima de tudo, estava ao lado dela, queria o mesmo que ela, mesmo com apenas 19 anos.
Os dois queriam levar aquela vidinha à frente, queriam que aquele amor surgido no primeiro período da faculdade de Arquitetura se materializasse na construção de uma existência, de um ser sólido. Eles sabiam que seu amor era doce e eles eram amigos e confiavam no futuro, confiavam tanto um no outro como um comandante confiava em seu astrolábio para levar seu barco a terras distantes, com sua tripulação a salvo. Aquele filho seria mais um no elo que formaram, mantendo e fortalecendo a quintessência daquele amor tão genuíno.
Porém, os pais dela, imbuídos de uma proteção devastadora, uma proteção mais materialista do que as estruturas dos prédios que os namorados viriam a projetar no futuro, insistiram para que ela abortasse. Ela disse que não, que o namorado e ela iriam casar, ele disse isso também, que a felicidade deles dois dependia da vida desse bebê. Os pais dela foram categóricos, mostraram para ela que o futuro dela era mais importante, que um bebê naquele momento estragaria sua vida, seus estudos, sua carreira. E ameaçaram com sanções financeiras. Ela foi obrigada a abortar. Ela não queria. Ela queria amamentar, ela queria chorinho de bebê de madrugada, queria formar uma família com ele, que tinha só 19 anos, mas era um homem bom. Mas, foram vencidos porque eram muito jovens e seus argumentos tinham a leveza dos sentimentos belos.
Ela sofreu uma perfuração no útero durante a microcirurgia, é assim que as clínicas clandestinas nomeiam o aborto. E ficou estéril. Ele continuou ao seu lado, mas sua tristeza o transformou somente em amigo. Ela o liberou, disse que fosse ter seus filhos. Eles se formaram, ela saiu de casa e foi morar só. Não suportava a raiva que tinha de seus pais, assassinos de seu filho, assassinos de sua maternidade.
Aquela morte significou a perda de uma parte de sua história, era como se as brincadeiras de boneca na sua infância ficassem sem encaixe. Era como se a vida com aquele homem de 19 anos não tivesse sido realmente permitida, já que a força que agora aos 35 possuía só lhe fora dada pela figura da caveira e sua foice pontiaguda que lhe furara o útero. Como num jogo de tira e põe: é preciso perder para depois ganhar.

A solidão a acompanha nos dias em que não recebe seus muitos amigos em sua casa. Adora quando eles trazem as crianças, o quarto de hóspedes fica todinho para elas, enquanto os adultos estão na sala, bebendo e destilando suas mazelas e alegrias. Não quis mais se relacionar, ou não aconteceu ainda. Talvez não tenha chegado a parte dos ganhos. E ela segue vivendo, sorrindo como pode, suportando. E assim os dias passam, um após o outro.