quarta-feira, 27 de maio de 2015

O meu corazón


   Sento-me para almoçar com ela, depois de servi-la. Passou a vida inteira sendo a última a sentar-se à mesa, cultura de seu povo em Barcelona. Agora, do alto de seus 93 anos, tem todo o direito de falar e fazer o que quiser e sou eu que me deleito a ouvir repetidas vezes suas histórias de cuando era niña.
   São situações contadas de forma randômica, e, incrivelmente verdadeiras, riquíssimas em detalhes. Posso mirar toda a paisagem, todo o ambiente das décadas de 20 e 30 do século passado. Estoy nas ruas de Poble Sec, nos bailes para namorá-lo, na loja de lustres de cristal.
   Antes disso, estoy sendo mandada para o interior, para la hacienda de mi abuela, com mis dos hermanitos, por causa do racionamento de comida durante a Revolução Civil. Passamos a noite viajando de trem, de Barcelona a Valencia, de Valencia a Alcoy. De Alcoy a Planes, tomamos un ónibus. E llego a Planes aos catorze anos, para ter o que comer e fazer companhia a minha amada avó.
   Vou trabajar na colheita de azeitonas, porque não sei quedarme inerte. Gosto tanto, que sou llamada para trabalhar em outras colheitas. Trabalho por duas e, por meu corazón compassivo, soy dupla de una enbarazada.
   Aos domingos, dia de descanso e de sol, o vento vem hacerme más feliz. Ao meio-dia, subo ao sótão da casa de mi abuela para ver o trigo no campo balançando dourado enquanto o vento, ah, el viento...
   Después, vuelvo a Barcelona, onde ando pelas ruas com uma moda só minha, porqué no tengo hermanas. Y miro a él. Él mirando a mi. Gosto dele porque tem el rostre pequeño, de carotas basta mi família. E ele é eletricista e me segue de longe, eu vejo. Eu gosto dele.
   É a vida dela que ficou em detalhes para mim. Se pergunto como foi a vinda para o Rio de Janeiro, de navio, ela não se lembra. Sei dos detalhes porque minha mãe, com sete anos na época da vinda, me contou. Meu avô veio antes para preparar a chegada dela e dos três filhos. E ele impediu que eles desembarcassem em Marrocos: imaginem uma linda mulher com uma filha loura de olhos verdes e dois filhos morenos, crianças de sete, cinco e três anos, passeando por Marrocos em 1952... Sequestro, na certa. Mas, ela não se lembra. Esta parte da história não é dela e sim de sua filha. E minha. Dela, é o meu corazón.




   

quarta-feira, 20 de maio de 2015

A lista


Me convidaram a fazer uma lista das coisas das quais eu não gosto, mas de forma divertida. Fazer listas é uma coisa que eu não gosto. Mas como me proponho a ser uma escritora profissional e toda vez que colocamos profissional junto a algum substantivo, temos que deslocar o adjetivo divertido para o fim-de-semana. Por isso, deixei essa lista para o último momento, para que eu ficasse desesperada e me lembrasse do que não gosto bastante pressionada mesmo, como quando trabalhava com metas e adoeci, para mencionar uma coisa da qual não gosto.
Eu gosto de dirigir. Mas não atrás de um caminhão de lixo. Inclusive, se o ar-condicionado estiver ligado, a sensação é de que eu comprei o “gleid chorume” e instalei no carro. Janelas abertas são a saída. E dar distância da solução de higiene urbana civilizada pós-moderna desenvolvimentista. Não sei como isso funciona na Alemanha. Tenho até um amigo que foi pra lá no início dos anos 90 para trabalhar com reciclagem. Tá rico. Mas, tenho certeza de que não é da forma que se faz aqui. Vou procurar saber.
Não gosto de ambientes muito arrumados. O caos me ressignifica. Eu penso que quando está tudo muito arrumado falta calor. Tem que ter um livro fora do lugar, um copo esquecido na ponta da mesa, as almofadas espalhadas no chão, como num convite para o conforto, marcas da presença humana. Tudo muito arrumado me lembra alguém que saiu de um SPA extremamente embotocado, sem conseguir mexer as sobrancelhas e a testa. Falta impacto. Por isso eu amo a Maria Callas: tudo nela é expressão, até as ondas dos cabelos.
Comida fria me irrita. Muito. Chego a levantar da mesa como um furacão, fazendo o barulho dele ao levar o telhado de uma casa, e abro com violência a porta do micro-ondas. Volto pra mesa gritando palavras de ordem do movimento “LAVAGEM NÃO!” Haveria muita majestade nisso, resquícios de vidas passadas, se não fosse eu a esquentar a comida no micro-ondas. Mas, a minha família ignora. E eu fico com cara de quem comeu e não gostou mesmo.
Muitas vezes, prisões afetivas se estabelecem sem que a gente perceba. Uma irmã chantagista, um pai cobrador, uma amiga excessivamente carente, um namorado mentiroso e, pronto: você está cativa e talvez não tenha se dado conta. Mas, como disse Rosa Luxemburgo, só quem se movimenta percebe as correntes. Essa é a função da Liberdade, a capacidade de nos fazer mover. E de perceber as moções da vida. Eu não gosto de prisões afetivas e quando as percebo, não gosto das pessoas que as construíram. Não tenho como escrever de forma divertida sobre isso, porque vejo o pior do ser humano nisso, coibir o movimento do outro, privar a liberdade, o prazer. Quando Rosa Luxemburgo fez sua citação, fazia referência à luta das mulheres por igualdade de direitos e quis que quando se percebesse as correntes, se lutasse para rompê-las. Termino minha lista aqui com este grito escrito dizendo que sou uma pessoa livre que não gosta de se sentir presa e que não gosta de quem a prende. E que farei de tudo para libertar e fazer sorrir qualquer mulher que se encontre em alguma prisão afetiva, mesmo sabendo que esta é a mais difícil de se libertar.



A extração



Seria louco se a gente acordasse todos os dias com a certeza de que tudo que rolasse nesse dia daria certo. Mesmo que a agenda estivesse marcando uma ida ao dentista. Para a extração de um dente.
            O peso da extração de um dente é equivalente a você ser chamada de puta sem ser, como se só estivesse reagindo a seus instintos sexuais guardados por mais de dezoito meses e fosse pega no flagra. E a extração de dente dá uma culpa de que você não tomou conta do dente direito, não escovou quando tinha que escovar. Mas, no meu caso, foi barbeiragem da dentista anterior que disse que sabia tratar canal e esburacou tudo errado.
            Peguei o metrô para ir até o consultório do meu dentista, que é meu parceiro de saídas, ainda bem. Mas, o dia prometia uma nuvem cinzenta chovendo em cima de mim, mesmo sentada no vagão correto para a saída certeira em direção à escada rolante da estação exata. Só que ela estava lá. Uma mulher em surto estava no mesmo vagão. Ia de um lado para o outro, balançando a cabeça, sacudindo a blusa e o casaco que segurava. Me concentrei para não olhá-la. E quando as portas se abriram na estação exata, saí primeiro.
            Mas, ela veio atrás. E me alcançou na escada rolante. Passou por mim e me bateu. E eu, emburrada pela extração do dente, entrei na vibração dela e reclamei. Ela só não me acertou com um chute porque eu desci dois degraus. E ela subiu correndo a escada rolante para me esperar lá em cima. Eu consegui raciocinar que o que ela queria eu não ia dar. Atrás de mim vinha a multidão e eu fui descendo os degraus, deixando a multidão passar, atrapalhando o fluxo totalmente, causando a maior confusão. Até que aparecesse um segurança para me questionar que raios eu estava aprontando. Pisei em pés, arranhei canelas, mas o segurança chegou quando eu ancorei na plataforma. E contei para ele, apontando, que aquela surtada ali queria me bater.
            Daí pra frente foi só proteção. Contato através de rádio e ela foi conduzida aos quintos. E eu pude passar, linda e ruiva, pelo saguão da estação exata, com o peito aos pulos, esquecida de que uma parte de mim seria extraída dali a quinze minutos.

            Meu dentista-parceiro foi muito gentil, se é que se pode chamar assim alguém que segura um alicate com força no seu dente e o balança pra lá e pra cá. Olhei o consultório dele por outro ângulo, de cabeça pra baixo, em um momento que não posso precisar qual. Mas, consegui me livrar da culpa quando vi o raio X da trilha errada que a dentista anterior fez na raiz do meu dente. Irreparável. Mas, existem os implantes e é isso que eu tenho na minha arcada agora. Titânio.