Eu estava andando por
Pequim e me dando conta de que aquela nebulosa de pessoas poderia me invadir,
me atravessar ao se chocar comigo em uma das dez avenidas que eu interpretei
como o sentido Aterro da nossa Avenida Rio Branco. Três delas eram ciclovias,
cada uma com ida e volta, repletas de gente, muita gente e eu, ocidental, me
sentindo absurdamente ambientada naquele universo de olhos puxados e peles
pálidas. O sentido Candelária repetia a quantidade de vias e gente e carros e
ônibus e transportes e soluções inimagináveis para uma cidade latina e
desorganizada. E eu, organizada estava em outras latitude e longitude.
Perto
do Ninho do Pássaro e do Cubo D’Água tudo era modernidade e rapidez. Os centros
de comércio do entorno me deixavam tão ocidentalizada quanto quando tinha
chegado àquela pérola do Extremo Oriente. A tecnologia se oferecendo como a
última novidade, nada de rotina. A moderna Pequim é puro estímulo.
Sua comida adocicada era um capricho que eu
viria a entender quando me aprofundasse mais em suas ruas perpendiculares às
grandes avenidas, contraste encontrado em poucos metros de caminhada. Nessas
ruas, construções quiçá milenares abrigavam outro tipo de comércio e por elas
caminhavam o mesmo povo chinês, porém com um tempo um pouco mais demorado, algo
contemplativo para as vitrines tradicionais com os dizeres na vertical que tanto
me seduziam. O ritmo asiático acontece numa batida mais perene, quase eterna.
Sim, pode-se dizer eterna, tão eterna quanto o ouro que saiu das minas do
continente e há quase um milênio domina os amplos edifícios da Cidade Proibida
com suas mais de 980 construções desde a Dinastia Ming, na era de 1420. Ela foi
construída para o lazer e abrigo dos imperadores e suas cortes.
E eu fiquei seduzida. E
ainda mais em casa. O som daquela Pequim antiga me preenchia, como um gongo que
finaliza um ritual, anunciando que tudo está bem. E, da dificuldade de
encontrar um conhecido em um local muito populoso, resolvi encontrar uma sósia
em Pequim. Essa resolução habitava em mim há algum tempo, esperando para
eclodir em local apropriado e a China foi a pátria-mãe dessa sósia de uma
garota de traços euroclássicos e pele rosada. Aquele tempo um pouco mais
demorado da gente da Pequim antiga foi o alarme para a eclosão dessa crisálida.
E a procura teve início.
Eu a procurei na
farmácia especializada em medicina tradicional, com suas paredes repletas de
prateleiras envidraçadas que armazenam os componentes dos remédios que serão
manipulados. Há quem diga que se encontra até escama de dragão como componente.
Essa gente mais contemplativa costuma se tratar dessa maneira, procurando os
seguidores desta antiga filosofia detentora da saúde.
Fui andando mais para
dentro da Pequim antiga até me deparar com um ferreiro. Parei na porta e fiquei
observando seu trabalho em uma ponta de ferro em brasa. Fogo e martelo.
Enquanto o fogo dilata o ferro, o martelo molda. É uma boa profissão para uma
sósia. Encontrei no passo da gente chinesa, naquela parte da cidade, uma
tenacidade secular, que nenhuma revolução política foi capaz de abrandar.
Um mercado de
hortaliças apareceu à minha frente, depois de ter andado por dois ou três
quarteirões. Elas estavam expostas em grandes tábuas de madeira e os gritos dos
feirantes chegavam aos meus ouvidos trazendo sua alegria e o frescor que as
hortaliças exalavam. Havia verduras e legumes conhecidos no mundo todo e outros
que não ouso repetir os nomes, mas que, de tão frescos, me fizeram reconhecer
que minha sósia teria que ter esse frescor em relação à vida, brotando da terra
a cada colheita.
Crianças correram em
minha direção quando saí do mercado. Elas pediam algo que eu não entendi e,
portanto, nada dei. Insistiram e continuei na minha negativa. Então, elas me
deixaram, seguiram em frente, brincando, rindo, sem olhar para trás. O povo
chinês é sábio desde pequeno. A sósia que vou encontrar na China também será.
E eu? Eu fiz o caminho
de volta para o hotel, analisando se estava pronta, se seria ideal para o que
minha sósia havia de esperar de uma sósia. Sentada na cama do quarto, ansiava
pela ida à Grande Muralha, em Shenyang, para buscar solidez e permanência.
Tocar em um tijolinho daqueles seria uma experiência transcendental.
Peguei um ônibus na
manhã seguinte, para uma viagem curta, somente uma hora e meia até Shenyang.
Uma estrada simples norteou a ida até a muralha, oferecendo imagens rurais
rudimentares, com gado arando pastos e montanhas cortando o céu. Encantadora.
E lá estava ela,
majestosa, imponente. Grande. A Grande Muralha. Não olhei para o entorno: subi
de teleférico até seu topo. Diferente do que acontecia em Pequim, ali, falas em
diferentes idiomas chegavam até os meus ouvidos e me fizeram crer em algo que
traria um burilamento ao meu ser. Crer que deveria estabelecer relações de
afeição com diferentes seres humanos, incluindo cada um, acolhendo cada um em
sua excentricidade ou sua simplicidade, expandir o coração, alargando as
artérias tal qual extensas eram as esquinas daquela muralha que se dividia e
seguia pela China. Abrir o peito a ponto de poder ser vista do espaço, como a
Muralha, a única construção humana que, com sua solidez, inebria os astronautas
a contemplarem o planeta azul. É a força da ternura agindo com seu caminhar
constante e sua atitude eficaz.
Essa crença chegou
rapidamente, como uma flecha lançada por um arqueiro e atingiu meu cérebro
mudando até mesmo minha intenção. A sósia que queria encontrar na China era eu
mesma, contemplativa, tenaz, alegre, refrescante, sábia, solidária e,
principalmente, que sabe amar. Amar doando, esperando somente um sorriso do
próximo. Amar o amor do andarilho, do viajante. O amor que sabe que amar é o
que basta e que talvez, ser amado nunca aconteça, mas dar amor é valioso.
Fiquei por duas horas
no topo da Muralha da China, caminhando por ela, tocando em seus tijolos e
reentrâncias. Tirei fotos das montanhas e sua vegetação exuberante e também dos
detalhes da construção. Quando decidi voltar, desci de tobogã numa aventura
deliciosa, sentindo o vento do oriente em meu rosto. Sim, posso dizer que fui
feliz na China.