segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Vou tentando


Papai Noel é um homem grande. É. Gordinho a gente sabe que é grande. Porém a minha ideia de escrita natalina não é sobre um grandão que me traga algo. É sobre um ser minúsculo que não me encontre. Nem aos meus, aos meus amigos, nem às minhas gravidinhas.
O que acontece é que não dá para pensar em uma festa de Natal tropical com o Aedes Aegypti ameaçando a felicidade dos casais que conheço. Não dá. E, corroborando com meu pensamento político, tudo se resolveria se o projeto de lei do então deputado federal Cristovam Buarque fosse votado por aquela corja (não entrou nem em pauta). Tal projeto de lei decretaria que todo filho e neto de parlamentar somente estudasse em escolas públicas. Educação para todos. Saúde. Saneamento básico. E pesquisa.
Me pergunto qual o percentual de bebês africanos nascidos com microcefalia, já que na África o Zika vírus tomba geral há décadas. Me pergunto também se os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz já estão se informando sobre isso e se a mídia está segurando esta informação por algum motivo.
Pensar em ter que apertar as touquinhas de Papai Noel para cabecinhas de bebê é algo tão revoltante quanto esta pandemia que aterroriza a construção de uma família. Minha revolta estaria bem representada por uma golfada em um auxílio-paletó.  
Mantenho meu quintal limpo e minha bolsa está mais pesada devido ao repelente que levo a todos os lugares e ao sentimento de ultraje causado pelo descaso vivido durante todos esses séculos de desleixo do Brasil para com seu povo.
Tento desejar um Feliz Natal, falta uma quinzena. Vou tentando, vou tentando.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Uma leve gastrite



Tem uma toxicidade neste ar que respiro. Deve ser pela densidade vinda da

lentidão do passar das horas. Tudo que pego me repele. É um sentimento de que

sou bom o suficiente para aquilo e o fastio se estabelece. Maçada. Nada me

satisfaz.


Talvez fosse melhor sair à rua e tomar um ônibus errado, mas, qual lugar é

errado se não se quer pouso nem estrada? Talvez o ideal fosse ir até a pracinha

só para me transformar no chato aconchegado na ruga do saco rendido do velho

babão que tara nas ninfetas saídas da escola estadual de Ensino Médio que

desemboca vida em primeira instância. Morderia muito aquela pele flácida, em

homenagem a toda vitalidade desejada e em contraste à pasmaceira que

percorre a bacia hidrográfica da minha capilaridade sanguínea.



Vou à rua. Copacabana nunca é tediosa. Mas sei que o que sinto vai além do que

vem de fora. Sou melhor. Nada me interessa.


Sento-me em uma mesinha à beira-mar.


Um bom porre seria o ideal, porém, encontrar alguém com o mesmo objetivo

nesta tarde de terça-feira de abril requer algum esforço, já que não sou dado a

me embebedar sozinho.  Minha agenda de contatos é extensa. E o sol alcança

meus joelhos descobertos pela bermuda cargo me indicando a expedição que

nunca farei, nem qualquer um dos que estão na minha agenda fará; todos

encaixados, enquadrados, esperando uma vida mais ou menos se transformar

num surto de síndrome de pânico ou de depressão ou nesta crise de tédio

megalômana que vivo hoje e que vou afogar em uma dúzia de caipirinhas como

algum gringo deslumbrado e incauto. Sozinho mesmo. Sozinho e megalômano.


Na quinta caipirinha já me dou por vencido. O limão me entediou. Pode ser que

minha vida seja amarga e eu não saiba, pode ser que a ideia de uma caipi-fruta

não me venha à cabeça, já que não li o cardápio porque sou bom demais e as

ideias de diversificação são para quem transborda, não para quem estagna.


Pago a conta e me levanto, agora visivelmente contrariado comigo mesmo.

Deixo uma parca gorjeta para o garçom e sigo emputecido para casa. Toco o

interfone com impaciência, nunca cumprimento o porteiro. Pego o elevador,

casa. Fico nu. Um banho. Nada de comida e amanhã uma leve gastrite.





quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Supermercado


     Foram os dois ao supermercado, levando, pela primeira vez, o boneco que

fizeram há dois anos. Quinto dia útil do mês, como sempre e o astral deles no

alto, como sempre. Supermercado era uma experiência antropológica: ela,

professora-doutora em Comunicação e Imagem, ele, doutorando em Ciências

Sociais, classificavam o humor das pessoas estratificando-as segundo os

pensadores que conheciam. Riam muito. E, desta vez, o júnior, molequinho

quieto, só observava, mesmo com dois anos de idade, balbuciando ainda mamã

e papá.

     Mas, neste mês, o supermercado estava mais do que cheio. O quinto dia

útil caiu em véspera de feriado e havia promoção de cerveja, carnes e artigos de

limpeza. Os corredores pululavam. O casal entrou com seu carrinho habitado

pelo júnior e se dirigiu para o corredor de cereais. Fizeram um espaldar de

arroz, feijão, açúcar, ervilha, lentilha, feijão fradinho e grão de bico para o júnior

ficar bem acomodadinho. Amavam tanto aquele boneco, que se encaixou

perfeitinho nos cereais e ficou deslizando os dedinhos nas grades do carrinho.

Passaram na seção de biscoitos, abriram um pacote do delicioso Maizena e

entregaram para a criança, que, no aspecto comida, gabaritava.

     Ele resolveu pegar outro carrinho e encher com os artigos de limpeza e os

artigos de lazer (churrastay or churraigo?) e, pela primeira vez, fizeram as

compras separadamente. Ela entrou no modo mecânico e foi enchendo o

primeiro carrinho com os itens para prover a despensa. E foi ficando cheio. Ao

chegar na seção de hortifrutigranjeiros, um funcionário estava abanando o

depósito das cabeças de alho. As peles de tom levemente rosado voavam por

todo espaço do hortifrúti e ela sentiu-se na festa das cerejeiras no Japão, que é

quando famílias nipônicas se reúnem em parques para assistirem as árvores

florescerem todas ao mesmo tempo. Não que já tivesse ido ao Japão, mas ela

tinha a capacidade de se transportar para um lugar mesmo tendo visto apenas

um documentário sobre o tema.

     Estava assim enlevada, quando ele chegou. Ela olhou para ele sorrindo e

falou sobre a epifania das cerejeiras. Ele olhou tão fundo dentro dos olhos dela e

tascou-lhe um beijo apaixonado. A seção de hortifrúti parou para observá-los.

Quando terminaram, ela suspirou e escondeu o rosto em seu ombro. E ele

perguntou:

     - Amor, cadê nosso bonequinho?

     - Cadê? Cadê? Meu Deus! Tá soterrado pelas compras! Tira! Tira!

     - Amor, calma, ele tá respirando, não chora, amor, calma. – Ele disse

rindo.

     - É essa minha Lua em Peixes, eu sou uma desnaturada. Olha, o pacote de

biscoito tá pela metade, ele vai passar mal...

     - Deixa ele dormindo aí, ele tá quietinho, só bota essas compras aqui no

meu carrinho, minha aluada maravilhosa. Leva este carrinho aqui e deixa que

eu termino com os os legumes. Vai lá fora tomar um café. O supermercado tá

cheio, a gente não tava junto... Para de chorar.

     E ela foi, com a certeza de que mesmo naquele dia em que fizeram

compras separados, estavam cada vez mais juntos.


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Tempo de cair

Corro de uma depressão galopante
Que dá sinais
Em detalhes agressivos

Os outros se queixam
Das gotas que caem
Dos meus cabelos


O outro não me coloniza
Porque o tempo é de cair
O tempo e o outro são o inferno


El Niño e Foucault se abraçam
Enquanto as gotas escorrem pelos meus ombros
E encontram o bico do seio


Nada há a alimentar
A não ser mais uma volta na espiral
Até chegar novamente
Ao ponto em que se é


Enquanto isso,
Destroem-se sonhos
E a gana de beber da seiva da Terra

domingo, 25 de outubro de 2015

Volume morto

O lume fosco
de uma tarde asfixiada
em vão cintila

reflete fraco

no volume morto
de água pós-transcontinental

contenções necessárias se fazem


recessão de sedes

recessão de salivas
recessão de lágrimas

razão do lume fosco.




sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Os caracóis subiam pelas paredes


Os caracóis subiam pelas paredes. Aquele jardineiro antigo, com jeito de capataz, quis jogar sal nos caracóis. Talvez por vingança, já que jogaram sal nas feridas dos seus antepassados. Não, aquilo já era uma questão de saúde pública. Mas, havia um, com uma concha muito colorida. Aquele eu proibi. Neste ninguém toca! E o antigo jardineiro, com doçura no olhar, a doçura dos jardineiros, entendeu meu pedido. Ele percebeu que aquele caracol colorido conviveria bem com flores. Principalmente as da pimenta. Com girassóis também, resplandecentes de sol forte, 40 graus.
No Córrego Beija-Flor a vida corria assim. Com toda a maldade que Deus sabe fazer. Caracóis morriam e humanos morriam junto. Vida de merda. Vida poética e de merda.
Mas Deus, numa de suas passadas por estas paragens terráqueas, quando Ele se vestiu de Buda, com sua generosidade divina, brindou uma jovem mãe com um pedido. Ela havia perdido seu bebê, e, por intenso amor terreno, não queria enterrá-lo, andava pela aldeia com o corpinho sem vida fruto de seu ventre no colo, desesperada. Alguém levou-a até Sidartha , que ouviu sua súplica por ter a vida de seu filho de volta. Buda pediu então, que ela conseguisse três sementes de mostarda. Porém, as sementes teriam que ser de um arbusto de mostarda plantado no quintal de uma casa em que a família não tivesse perdido nenhum amado. A jovem mãe começou uma nova peregrinação, ainda agarrada àquele amor ido. Toda casa indiana tem um pé de mostarda. Ela chegava a cada casa e perguntava: – A senhora poderia me dar três sementes de mostarda? – Sim, era a resposta. E ela: – Mas, a sua família já perdeu alguém? – Sim, era a resposta. Ela então agradecia e ia bater em outra casa, incansável. Até que chegou à casa de uma sábia, sim ela era idosa, os sábios são idosos, de corpo ou de alma ou de corpo e alma. A jovem mãe repetiu sua ladainha. A sábia disse, com voz divina: – Filha, não há família que não tenha perdido um amado. A jovem mãe sentiu as palavras como gume em seu peito. E compreendeu. Voltou para sua aldeia, voltou para o seu lar, e enterrou o corpo do seu amor, agora entregue ao divino.
No Córrego Beija-Flor estavam sendo usados pesticidas. Aquele jardim, naquele momento, estava precisando de pesticidas. Para acabar com a peste, com o mal. E com a confusão. Pesticidas devem ser usados, do jeitinho de que quem receitou falou. Porque há amor naqueles que receitam pesticidas. Eles sabem o que fazem. Não permitem que jardins se estraguem.
O jardineiro, ah, ele se chama Tião da Rita, cuida com muito amor de seu jardim. Pesticida na hora certa. Pesticida com compreensão. O Tião da Rita revolve a terra, faz com que ela respire, se renove. O Tião da Rita quer seu jardim muito florido, para que seu caracol colorido seja feliz entre as flores da pimenta e os girassóis.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Sorte cega



Pode ser que um dia
Chegue o dia
Em que a gente dê
Aquela sorte cega
E que, enfim,
Nossas frontes se façam
Presentes em nossas frentes
Nessa batalha campal
Do nosso estar,
Do nosso conseguir estar.

Que esse meu desejo
De te tocar
Saia do forno,
Queimado,
800 graus,
Como escultura
Da minha argila,
Em que moldo
Opiniões, saberes e vontades.
Me moldo.
Esperando a sorte cega,
A admirar a peça
Do meu desejo,

Em exposição.


sábado, 3 de outubro de 2015

Conto sem adjetivo.



Da preguiça.



Aquele era o dia de não querer nada. Tinha que fazer exame de sangue, e, até para isso, preferiu pegar um táxi a encarar um ônibus até seis pontos abaixo na avenida do bairro. Não tomou banho. Pediu para a atendente do laboratório duas porções a mais de biscoito, ao tomar o café-com-leite. Nem tinha se dado conta de que até seu sangue demorou mais para encher o tubo de ensaio do que nas outras vezes. As porções a mais de biscoito eram para não ter que mexer nos botões do fogão, conseguiu pensar. Na rua, pegou outro táxi, para pagar com um dinheiro que não era seu, que deveria devolvê-lo naquele dia mesmo. Subiu as escadas, somente um lance e entrou em casa. Não quis olhar a janela. A ida à rua satisfez sua impaciência. Não quis livro. Não quis TV. Apenas estatelou o olhar na sanca do teto. Quando escureceu, desabotoou o jeans, puxou a coberta, virou de lado e dormiu.

domingo, 20 de setembro de 2015

Divergentes



É a partir daqui que divirjo. É a marca que fiz com o cuspe para que ninguém pise. E me laureio com o direito de não expressar o motivo de tamanha estranheza. Não tangencio mais. Muito menos penetro.
Rasgo em duas a pétala da orquídea com que me tocava em teu nome. Enxergo que é assim que ela deve ser: pé e tala para curar quem já não pode caminhar. Divergentes em seus anima e animus, já não encontram semelhança, parentesco, igualdade. Já não encontram terra porque não buscam cosmos.
Seguir caminho pautado em linhas escritas displicentemente, sem pressa, sem peso, sabendo do ritmo do tempo lento, do mover do pé na tala, prudente e generosa consigo, numa arte exposta no pilar dos que não suportam a vida. E a inventam na fabulação dos dias transcorridos numa abóbada interna, fornecendo de dentro para fruírem de fora.
Ser ainda vento a alimentar brasa que findará cinza. Não há força que impeça o vento de ventar. De agir. De gerar energia e girar moinho. Produzir prática enquanto a paz chega aos poucos numa medida homeopática, conta-gotas de beija-flores de um polinizar sozinho.
Vivenciar o devir-estrada, no ponto exato de abandonar tala e seguir pé, convergindo mundo e margeando ilusões, no afã de aproveitar o trajeto, significando o destino.
Divergente, sim. Congruente em seu sentido maior, contudo. 







domingo, 13 de setembro de 2015

Vida pagã


Ter o que dizer
Dizer mais que escrever
Mais profundo
E denso
Para que quatro deles
Falem sobre mim
Outros Marcos, Mateus,
Lucas e João.
Mas que o que eu diga preste,
Não para salvar o mundo
Mas que salve
Ao menos a mim.
Que o que eu diga
Seja pedra de Sísifo
A cada vez que desce
Venha com novo sentido:
Que eu me salve desta vida vã.
Que o que eu diga
Seja asa de Ícaro
A cada voo insano
Derreta a cera
Da certeza dura:
Que eu me salve desta vida vilã.
Que o que eu diga
Seja flecha de Eros
A cada tensão pura
Enrijeça a tez nua
De uma escrava tua:
Sem me salvar desta vida pagã.

sábado, 12 de setembro de 2015

Agora durmo



            Agora procuro nos cachos dos seus cabelos a condição de estar acordada, para passar noites olhando você ressonar.  E me lembrar constantemente do primeiro encontro dos nossos seios, que buscavam o encostar dos nossos corações para transformar minha existência neste passar do sol e das estrelas de forma leve.
            Agora eu durmo. Durmo porque encontrei nos seus lábios compreensão e amizade capazes de afugentar o medo e a angústia de ser silenciosa nas noites em que as pálpebras não se fechavam e as lâmpadas acesas brilhavam tão agudas que feriam meus lençóis despertos.
            Amada minha, agora tento manter em minha mente a sensação indescritível de nós duas caminhando pelas ruas de mãos dadas, como as amantes que somos, mas o sono me abraça, me trazendo a certeza de ter encontrado quem eu realmente sou, quando dormi com você. E o sono me leva, e o que sei é que quando acordar, a primeira imagem que verei será o seu rosto, que tanto amo e esperarei você me perguntar, ao acordar, se dormi bem.


terça-feira, 11 de agosto de 2015

Desapego


Ele tirou o chiclete da boca e esticou até arrebentar. Fez uma bolinha e de novo esticou até arrebentar. Ficou repetindo o movimento, displicentemente.  Estava à frente de um coroa que por dezessete anos não tinha estado nem aí pra ele e agora que ia morrer resolveu procurá-lo. Só essa mãe mesmo, de coração gigante, para fazê-lo ir se encontrar com esse canalha egoísta que agora vinha tentando se redimir.  O coroa tentava se entrosar, ele sacou que ele tava ligado nos trend topics da galera. Mas, nem. Quem foi deixado nos braços de uma mulher guerreira sabe muito bem quem é quem.
Sabe o que é preparar presentinhos na escola para o dia dos pais e faltar à creche-escola nesse dia, sendo deixado na casa da vizinha, porque a mãe coragem tinha que trabalhar. Sabe o peso dos presentinhos confeccionados para uma ideia, uma abstração de figura paterna, para um porta-retrato vazio, para um enfileiramento de presentinhos que jamais seriam entregues até o dia do desapego dessa necessidade de acolhimento por um pai de quem ele queria ser espelho. Porque desapego é quando se corta todos os vínculos, todas as conexões.  Desapego é quando se deixa ir, mesmo se tratando de ideias e abstrações. De carência. Mesmo sendo muito novo, jovem, ele deixou ir. Não havia mais laços ideários, nunca houve sequer sentimentalóides. Ele deixou ir porque a vida urgia para ele se fazer, para que ele se construísse com a firmeza de quem sabe que somos todos sós, a vida tatua isso na cara de quem ela esbofeteia.
E o coroa na sua frente na certa deve ter visto algum PowerPoint de carpe diem e encontrou sua mãe pelo Facebook. Deve estar com medo de morrer sozinho, pensou e sentiu vontade de tacar a bolinha de chiclete na palhaça dele. Sentiu raiva por todo o esforço que sua mãe fez sozinha durante seus 18 anos de vida. Pensou em tudo que tinha que estudar para o Enem. Queria garantir um A.
Com toda a sua educação, foi se despedindo. O coroa levantou e forçou um abraço. Pai é quem está junto, quem abraça desde sempre. Ele ficou imóvel. Sua frieza poderia ter congelado o tumor do coroa. O coroa se afastou, ele também, não sorriu. Saiu sem olhar para trás.






domingo, 2 de agosto de 2015

Ela não queria


Ela não queria. Não queria porque ali estavam sonhos de construção de uma vida ao lado de quem amava. Ele era dez meses mais novo que ela, mas ela sentia que ele era um homem bom, aquele em quem podia confiar e que, acima de tudo, estava ao lado dela, queria o mesmo que ela, mesmo com apenas 19 anos.
Os dois queriam levar aquela vidinha à frente, queriam que aquele amor surgido no primeiro período da faculdade de Arquitetura se materializasse na construção de uma existência, de um ser sólido. Eles sabiam que seu amor era doce e eles eram amigos e confiavam no futuro, confiavam tanto um no outro como um comandante confiava em seu astrolábio para levar seu barco a terras distantes, com sua tripulação a salvo. Aquele filho seria mais um no elo que formaram, mantendo e fortalecendo a quintessência daquele amor tão genuíno.
Porém, os pais dela, imbuídos de uma proteção devastadora, uma proteção mais materialista do que as estruturas dos prédios que os namorados viriam a projetar no futuro, insistiram para que ela abortasse. Ela disse que não, que o namorado e ela iriam casar, ele disse isso também, que a felicidade deles dois dependia da vida desse bebê. Os pais dela foram categóricos, mostraram para ela que o futuro dela era mais importante, que um bebê naquele momento estragaria sua vida, seus estudos, sua carreira. E ameaçaram com sanções financeiras. Ela foi obrigada a abortar. Ela não queria. Ela queria amamentar, ela queria chorinho de bebê de madrugada, queria formar uma família com ele, que tinha só 19 anos, mas era um homem bom. Mas, foram vencidos porque eram muito jovens e seus argumentos tinham a leveza dos sentimentos belos.
Ela sofreu uma perfuração no útero durante a microcirurgia, é assim que as clínicas clandestinas nomeiam o aborto. E ficou estéril. Ele continuou ao seu lado, mas sua tristeza o transformou somente em amigo. Ela o liberou, disse que fosse ter seus filhos. Eles se formaram, ela saiu de casa e foi morar só. Não suportava a raiva que tinha de seus pais, assassinos de seu filho, assassinos de sua maternidade.
Aquela morte significou a perda de uma parte de sua história, era como se as brincadeiras de boneca na sua infância ficassem sem encaixe. Era como se a vida com aquele homem de 19 anos não tivesse sido realmente permitida, já que a força que agora aos 35 possuía só lhe fora dada pela figura da caveira e sua foice pontiaguda que lhe furara o útero. Como num jogo de tira e põe: é preciso perder para depois ganhar.

A solidão a acompanha nos dias em que não recebe seus muitos amigos em sua casa. Adora quando eles trazem as crianças, o quarto de hóspedes fica todinho para elas, enquanto os adultos estão na sala, bebendo e destilando suas mazelas e alegrias. Não quis mais se relacionar, ou não aconteceu ainda. Talvez não tenha chegado a parte dos ganhos. E ela segue vivendo, sorrindo como pode, suportando. E assim os dias passam, um após o outro. 

domingo, 26 de julho de 2015

Para adultos colorirem


Estava todo mundo falando sobre os livros para adultos colorirem. Ela só tinha visto pela internet, vivia reclusa, numa região da cidade que parecia uma zona rural, de tanto verde que cercava as habitações. Gostava de cuidar do jardim, da horta e dos cães que preenchiam seus dias solitários. Além de sua forte participação nas redes sociais, é claro.
Havia sido uma escolha forçada este modo de vida. Pedira demissão da família em que nascera, após ter sido comprovada uma fraude no testamento de sua mãe que contemplaria a ela e seus cinco irmãos. Ela o havia falsificado para ficar com as joias e a aplicação em um fundo de investimento que rendia bastante. Quem descobriu foi uma sobrinha esperta, bancária, que tinha curso de grafologia e perícia de escrita manual. Mas o isolamento fazia bem a ela. Estava aposentada, tinha sido bem-sucedida na profissão, podia ficar a olhar os pássaros em seu jardim nas tardes preguiçosas e um tanto alegres, porque, nela, não havia sinal de remorso algum pelo que havia feito, em qualquer momento de sua vida.
Se divertia nas redes sociais, com seus diversos perfis falsos, de personalidades cativantes e cruéis. Só era ela mesma com os cães e o jardineiro, com quem gostava de recordar os tempos antigos da cidade do Rio de Janeiro. E havia comentado com ele sobre os livros para colorir para adultos, o que o deixou bastante interessado. Assim, ela resolveu ir até um shopping center para comprar para ele. Saiu um dia à tarde.
Na livraria, ficou encantada com os vários livros com motivos de flores para colorir. Presentearia sim, seu amigo, que poderia colorir os jardins imaginados por desenhistas, ele que era desenhista real de jardins belos e concretos. Porém, seu olhar foi capturado por um livro com o tema das mil e uma noites de Sheherazade. Imediatamente, seu desejo se acendeu. Abriu o livro com avidez, ficou decepcionada. Eram motivos árabes e não sensuais. Sua vontade baixou. Procurou uma caixa de lápis de cor e foi passear pelas prateleiras expostas. Mas, havia um display com livros para colorir para adultos, porém para adultos mesmo. O tema era sexo. O desejo a tomou. Folheou as páginas e se certificou de que era isso que queria. Imaginou que dali viriam muitas ideias enquanto estivesse colorindo aquelas orgias tão bem traçadas. Passou a língua nos lábios e pegou mais uma caixa de lápis de cor.

Pagou suas compras na livraria quase que satisfeita. Na volta para casa, as ideias já afloravam na sua mente. Abriu a porta de casa, deixou as bolsas no sofá, foi para o quarto, ficou nua e deitou na cama.

domingo, 19 de julho de 2015

A sósia

       
Eu estava andando por Pequim e me dando conta de que aquela nebulosa de pessoas poderia me invadir, me atravessar ao se chocar comigo em uma das dez avenidas que eu interpretei como o sentido Aterro da nossa Avenida Rio Branco. Três delas eram ciclovias, cada uma com ida e volta, repletas de gente, muita gente e eu, ocidental, me sentindo absurdamente ambientada naquele universo de olhos puxados e peles pálidas. O sentido Candelária repetia a quantidade de vias e gente e carros e ônibus e transportes e soluções inimagináveis para uma cidade latina e desorganizada. E eu, organizada estava em outras latitude e longitude.
            Perto do Ninho do Pássaro e do Cubo D’Água tudo era modernidade e rapidez. Os centros de comércio do entorno me deixavam tão ocidentalizada quanto quando tinha chegado àquela pérola do Extremo Oriente. A tecnologia se oferecendo como a última novidade, nada de rotina. A moderna Pequim é puro estímulo.
 Sua comida adocicada era um capricho que eu viria a entender quando me aprofundasse mais em suas ruas perpendiculares às grandes avenidas, contraste encontrado em poucos metros de caminhada. Nessas ruas, construções quiçá milenares abrigavam outro tipo de comércio e por elas caminhavam o mesmo povo chinês, porém com um tempo um pouco mais demorado, algo contemplativo para as vitrines tradicionais com os dizeres na vertical que tanto me seduziam. O ritmo asiático acontece numa batida mais perene, quase eterna. Sim, pode-se dizer eterna, tão eterna quanto o ouro que saiu das minas do continente e há quase um milênio domina os amplos edifícios da Cidade Proibida com suas mais de 980 construções desde a Dinastia Ming, na era de 1420. Ela foi construída para o lazer e abrigo dos imperadores e suas cortes.
E eu fiquei seduzida. E ainda mais em casa. O som daquela Pequim antiga me preenchia, como um gongo que finaliza um ritual, anunciando que tudo está bem. E, da dificuldade de encontrar um conhecido em um local muito populoso, resolvi encontrar uma sósia em Pequim. Essa resolução habitava em mim há algum tempo, esperando para eclodir em local apropriado e a China foi a pátria-mãe dessa sósia de uma garota de traços euroclássicos e pele rosada. Aquele tempo um pouco mais demorado da gente da Pequim antiga foi o alarme para a eclosão dessa crisálida. E a procura teve início.
Eu a procurei na farmácia especializada em medicina tradicional, com suas paredes repletas de prateleiras envidraçadas que armazenam os componentes dos remédios que serão manipulados. Há quem diga que se encontra até escama de dragão como componente. Essa gente mais contemplativa costuma se tratar dessa maneira, procurando os seguidores desta antiga filosofia detentora da saúde.  
Fui andando mais para dentro da Pequim antiga até me deparar com um ferreiro. Parei na porta e fiquei observando seu trabalho em uma ponta de ferro em brasa. Fogo e martelo. Enquanto o fogo dilata o ferro, o martelo molda. É uma boa profissão para uma sósia. Encontrei no passo da gente chinesa, naquela parte da cidade, uma tenacidade secular, que nenhuma revolução política foi capaz de abrandar.
Um mercado de hortaliças apareceu à minha frente, depois de ter andado por dois ou três quarteirões. Elas estavam expostas em grandes tábuas de madeira e os gritos dos feirantes chegavam aos meus ouvidos trazendo sua alegria e o frescor que as hortaliças exalavam. Havia verduras e legumes conhecidos no mundo todo e outros que não ouso repetir os nomes, mas que, de tão frescos, me fizeram reconhecer que minha sósia teria que ter esse frescor em relação à vida, brotando da terra a cada colheita.
Crianças correram em minha direção quando saí do mercado. Elas pediam algo que eu não entendi e, portanto, nada dei. Insistiram e continuei na minha negativa. Então, elas me deixaram, seguiram em frente, brincando, rindo, sem olhar para trás. O povo chinês é sábio desde pequeno. A sósia que vou encontrar na China também será.
E eu? Eu fiz o caminho de volta para o hotel, analisando se estava pronta, se seria ideal para o que minha sósia havia de esperar de uma sósia. Sentada na cama do quarto, ansiava pela ida à Grande Muralha, em Shenyang, para buscar solidez e permanência. Tocar em um tijolinho daqueles seria uma experiência transcendental.
Peguei um ônibus na manhã seguinte, para uma viagem curta, somente uma hora e meia até Shenyang. Uma estrada simples norteou a ida até a muralha, oferecendo imagens rurais rudimentares, com gado arando pastos e montanhas cortando o céu. Encantadora.
E lá estava ela, majestosa, imponente. Grande. A Grande Muralha. Não olhei para o entorno: subi de teleférico até seu topo. Diferente do que acontecia em Pequim, ali, falas em diferentes idiomas chegavam até os meus ouvidos e me fizeram crer em algo que traria um burilamento ao meu ser. Crer que deveria estabelecer relações de afeição com diferentes seres humanos, incluindo cada um, acolhendo cada um em sua excentricidade ou sua simplicidade, expandir o coração, alargando as artérias tal qual extensas eram as esquinas daquela muralha que se dividia e seguia pela China. Abrir o peito a ponto de poder ser vista do espaço, como a Muralha, a única construção humana que, com sua solidez, inebria os astronautas a contemplarem o planeta azul. É a força da ternura agindo com seu caminhar constante e sua atitude eficaz.
Essa crença chegou rapidamente, como uma flecha lançada por um arqueiro e atingiu meu cérebro mudando até mesmo minha intenção. A sósia que queria encontrar na China era eu mesma, contemplativa, tenaz, alegre, refrescante, sábia, solidária e, principalmente, que sabe amar. Amar doando, esperando somente um sorriso do próximo. Amar o amor do andarilho, do viajante. O amor que sabe que amar é o que basta e que talvez, ser amado nunca aconteça, mas dar amor é valioso.

Fiquei por duas horas no topo da Muralha da China, caminhando por ela, tocando em seus tijolos e reentrâncias. Tirei fotos das montanhas e sua vegetação exuberante e também dos detalhes da construção. Quando decidi voltar, desci de tobogã numa aventura deliciosa, sentindo o vento do oriente em meu rosto. Sim, posso dizer que fui feliz na China.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Eurípedes



Lá estava ele de novo, passeando sobre o muro de sua casa, pelas tardias horas da noite. Os cachorros alardeavam e ela acordava para saber o que se passava. Abria a janela, já com a lanterna em punho e apontava na direção dos focinhos dos cães. Divisava o réptil em seu balancear de equilibrista, e, marota, mirava a luz nos olhos dele paralisando-o, na intenção de admirar aquela beleza pré-histórica. Ficava poucos momentos assim, tinha dó do bicho, e o libertava, para paquerar o bailar da cauda no muro e permitir que os cães reiniciassem seu ladrar.
O nome dele é Eurípedes, decidiu. Um réptil de um metro e meio no seu muro é algo apaixonante e suas repetidas visitas a faziam sentir-se qual namorada aguardando serenata. A cantilena dos cães era sua serenata. Essas noites eram mais vibrantes. Nem se dava conta da hora, importante era a lanterna e a janela aberta.
Eurípedes chegava, desfilava até o pé de amoras, ficava durante algum tempo recebendo a brisa da noite em sua grossa pele pecilotérmica e seguia em frente para um destino desconhecido por ela, para onde sua janela não permitia ver. Mas, ela se sentia plena, pois sabia que o veria novamente, os cães cantariam para ela. Era outono.
As visitas de Eurípedes tinham a frequência animalesca, ora sim, ora não. Ela dormia calmamente, não havia preocupação. Outono, inverno, primavera. Ele vinha com seu caminhar lento por sobre o muro, enlevando-a com a altivez de um herdeiro de uma antiga dinastia. Amor.
Quando se percebeu apaixonada, fez de Eurípedes seu escravo. A lanterna em seus olhos permanecia agora muito mais tempo e ela ficava fixada naquele olhar paralítico, inerte. Ela podia ler naquele olhar algo feroz e manso, frio e cálido, distante e terno. Isso a inebriava. O momento em que o libertava trazia para si a própria liberdade, mas vê-lo ir-se sem olhar para trás causava nostalgia.
A Terra seguiu seu curso e o verão chegou. Calor, muito calor. Os cães pararam de latir à noite. Onde ela morava, havia muitas pedras, frescas e úmidas e Eurípedes não veio mais. Um quê de indolência se estabeleceu em seu quintal. Tudo parado. Menos seu coração que, de tanto bater acelerado, impedia que ela dormisse. Começava folheando as páginas de um livro. Depois mexia no celular. Passava para a televisão, que zapeava sem parar. Apagava a luz. Finalmente, pegava a lanterna e ficava acendendo e apagando, que nem vagalume na escuridão do mato. Nesse movimento, ela conseguia adormecer. Dormia um sono leve, ressonando baixinho, até aprofundar. Nas camadas mais densas, na hora mais pesada da noite, naquela em que o ser é realmente ele, ela sonhava. Sonhava com o lagarto. Via-se nua frente ao lagarto e ele seguia em frente em seu passo lento até desaparecer. Acordou calmamente, tanto quanto era o caminhar do lagarto.
O sonho a perseguiu por duas noites, numa manhã, ela pegou o computador e pesquisou seu significado: insatisfação das necessidades primárias do ser humano. Sim. Ela sabia disso. Ela tinha uma fome, sim. Mas, estava camuflada. Ela tinha fome de gente e se negava. Ela tinha fome de um homem, mas preferia estar em casa, sem nem esperar que ele batesse à sua porta. Preferia transferir seu amor para um ser de sangue frio a ter que se arriscar a se relacionar novamente.
Ela não saiu de casa. Ela não saiu da janela. Era verão e ela não foi atrás de gente. Esperou placidamente os dias passarem, ele vai voltar, Eurípedes vai voltar, pensava durante os meses que faltavam para o outono chegar. E assim aconteceu. A estação do ano mudou, e Eurípedes voltou. Em cima do muro.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

Análise


Saiu meio atordoada da sessão de análise. Foi uma sessão estranha. Tinha começado discorrendo como tinha passado a semana, sem nenhum percalço ou atropelo. Como papo de comadre. Mas, faltando pouco tempo para o término, um sonho que tivera brotara em sua mente. E ela o descreveu para a analista.
            Ela sonhou que estava na casa de seu ex-namorado, sozinha, pois tinha entrado com a chave que ele havia lhe dado e, subitamente, sentiu vontade de ir ao banheiro fazer cocô. Ela, que tinha prisão de ventre, contou que no sonho, sentiu um prazer enorme ao defecar. Quando levantou, olhou para o que tinha feito, era enorme, pegou e colocou na boca. Contou para a analista que tinha gosto de sêmem e que assim o sonho terminava. A analista ficou em silêncio durante um tempo e olhou para o relógio em cima da mesa. Já levantando para marcar a próxima semana, perguntou para ela se faltava muito para bater as metas que seu gerente havia implantado naquele mês e ela respondeu, bastante animada, que já havia conseguido e que agora buscava alcançar um patamar em que seria premiada, caso atingisse. A analista somente sorriu.
            Sua inteligência excedia bastante a média dos mortais, por isso estava tentando construir laços entre o sonho que contara e a pergunta sobre as metas alcançadas em seu trabalho, porém, a calçada estava muito cheia de pessoas com seus guarda-chuvas, ela precisava prestar atenção para não se machucar, porque tinha que ir até uma delicatessen comprar coisinhas. Iria encontrar suas amigas para uma noite de jogatina animada e boa conversa.
            Quando chegou, as meninas já estavam animadíssimas, o papo rolando solto, garrafa de vinho aberta. Não, o universo das conversas não se restringia ao assunto homem. Muita bobeira estava sendo dita, mais duas garrafas de vinho abertas e ela resolveu abrir um tubinho de patê que havia trazido. Colocou o patê em uma tigela redonda e o patê, ao sair do tubinho, ficou parecendo um cagalhão. Ela riu e o levou assim mesmo para a mesa, acompanhado de uma travessa de torradinhas, fazendo cara de séria. As amigas não notaram de imediato. Ela não tocou no monumento intestinal. A primeira ia se servir e ficou com nojo, recuou dizendo que tava parecendo um cocô e que não iria comer. Foi o suficiente para as outras três engrossarem o coro. “Ai, que nojo”, “ai, que nojo”, “eu não vou comer isso, parece cocô”.  E ela, escandalizada com tamanha frescura, pensando que tinha colocado um cagalhão com gosto de porra na boca e essas mimadas querendo jogar fora um patê caro para caralho, só por causa do formato. Resolveu se servir dizendo que era laboratorista. As amigas gritaram de nojo. Colocou a torrada na boca e falou que era para elas deixarem de ser nojentas. Nesse momento, pegou a espátula e mexeu o patê todo, desfazendo o formato do cocozão. Elas relaxaram, ma non troppo. O patê ficou de lado. Só duas delas comeram.

            Enquanto elas se divertiam, duas questões não saíam de sua cabeça: o que fazer para defecar tão bem quanto no sonho e se toda merda que desse acabasse em gozo, estava tudo resolvido na vida dela. Questões para levar para a próxima sessão de análise.

domingo, 28 de junho de 2015

Encontro sincero



Era um dia de entrega. Era um dia de amor. Era uma tarde em que a luz entrava sorrateira pelas frestas das persianas daquele apartamento na zona sul. A luz queria ser testemunha do que estava explodindo sutilmente naquele quarto. Era o dia do encontro dos corpos que se desejavam há mais tempo do que podiam suportar sem se tocar. Um par de anos os havia separado. Era um amor sem pé nem cabeça, um amor de internet, vingado por presságios benfazejos e tempo lento.
Um poema novo nascia no toque das línguas e velhas canções preferidas brotavam dos poros que se esfregavam nas peles da fêmea e do macho, pois era o que eles eram – um do outro – permeáveis e sem limites. O que escutavam já estava na playlist que ele cuidadosamente preparou para recebê-la. Conhecia a lista dos seus discos preferidos, não era um só (quem tem um só disco preferido?), em todos eles tem um blues cantado e tocado com cada átomo de cada célula desses corpos doadores de essência musical para nos fazer uns humanos mais furiosos por essa coisa que é vida. E a lista dela tocava embaralhada, fazendo-a apertá-lo por dentro. Elis em “Os Sonhos mais lindos”, Billie em “Music for torching” e “Lady in Satin”, Cassia em “Acústico” e todos seus outros, Jards Macalé em “Jards”, Amy em “Back to Black” e Cazuza em “Exagerado” e “Ideologia”. Quando Elis cantou “Andança”, os olhos se encontraram, namorada e namorado juraram que por onde forem querem ser par um do outro.
E ele conhecia cada mexida das sobrancelhas dela, cada respiração, de tanto observá-la pela tela de seu computador, sabia o que ela queria e deixou que a luz que entrava pelas frestas das persianas iluminasse seus olhos só para que ele visse que aquele olhar profundo estava ali, desvendando-o, talvez para sempre, talvez só por alguns meses, mas que naquele momento sincero representava um encontro tão velho, um encontro tão sentido, um encontro que só “It had to be you” na voz de Billie Holiday poderia explicar ao se juntar aos movimentos que ele fazia para anexá-la ao seu corpo.

Eram mais de mil músicas e elas tocaram sem parar durante dias e eles só se separavam para respirar. Só a luz do dia e da noite foi testemunha da realização daquela parceria amorosa, poética e musical.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Velozes minutos



   As feridas necrosadas em sua perna se espalhavam com rapidez, assim como os cigarros que acendia se extinguiam em velozes minutos. Deitada em sua cama, ela observava a brasa consumindo o tabaco, com a rapidez com que seus dias não passaram em toda a sua vida. Agora, aguardava o fim dela, observando seu corpo se deteriorar, era só uma questão de tempo, desse tempo que tinha sempre brincado com ela.
   Sempre. Sempre os outros, sempre pra já, sempre depois. Essa era a existência de Primeira, estabelecida não por valoração interna e sim por uma condição de passagem, de urgência, de deixar de ser.
   Aguardava a chegada de Segunda, com sua habitual secura na voz e nos gestos. Não podia culpá-la, pois a tinha moldado assim, para o enfrentamento dos tempos, dos dias e das noites. Segunda chegou e, surpreendentemente estava doce. Trazia chocolates que, mesmo sabendo proibidos, queria que Primeira desfrutasse, pois talvez aquela fosse a última de Primeira.
   O gesto demorou os minutos e Primeira demorou nos lábios um sorriso derretido de cacau que as aproximou como se aproximam plantações inteiras na hora da colheita. Foi a presença da foice abrandando o coração de Segunda, avisando que sempre há tempo e que há que se fazê-lo elástico e compassivo.
   Nada foi dito, nem houve sequer uma lágrima rolada. Talvez uma respiração suspensa, imperceptível, e sim, houve um olhar trocado, durante um demorado meio minuto em que verdades expressas desveladas se fizeram presentes. Sustentaram assim aquele silêncio, mulheres de fibra. Quem é capaz de tal feito?


   Primeira desviou então o olhar para a caixa de chocolates, esquecendo-se dos cigarros. Segunda ouviu barulho na porta. Deviam ser Terceira e Quarta chegando da rua, uma do trabalho, a outra da escola. Terceira cuidando de Quarta, muito confidentes, Segunda estava tranquila. O que não sabia é que Quarta, às gargalhadas, muito confiante, acabava de segredar à Terceira que na parte da manhã havia passado no posto de saúde da Prefeitura, pois tinha visto um anúncio no ônibus informando que lá se distribuíam preservativos gratuitamente e que, como começou a namorar com Primeiro, quer fazer uma história diferente das que conhece.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Reflexo


Aquele reflexo no espelho dizia tanta coisa... Ela olhava tão profundamente para dentro de seus olhos que tinha a sensação de ser um outro alguém, em outro lugar, num universo paralelo. E sentia-se bem naquele estado, já que o estado das coisas era tão complexo, tão outro, tão inimaginável para ela.
Tinha sentido uma dor tão aguda e funda. Por quê? Porque nenhum de seus projetos a dois tinha tido êxito. Tudo que construíra em seus sonhos ruíra no alternar das estações do ano. Quem era ele? Ela desconhecia. Não era aquele que se apresentara, aquele que a beijara, que a encantara. Não era quem a convencera a romper fronteiras e que dissera que a amava.
No espelho, seus olhos brilhavam cheios das lágrimas ainda indecisas. O rosto dele estava à sua frente, aquele sorriso que a inebriava. Podia sentir o roçar das peles e o perfume que ele usava, como se ali ele tivesse se materializado.  Não percebia, porém, que as virtudes que incutiu imaginariamente nele vieram de uma personalidade que seria somente a dela. Ainda não haviam dito a ela que a vida é muito curta para ser pequena, e que, desperdiçá-la com pessoas pequenas é deixar de viver.
Estava incrivelmente linda com as lágrimas agora decididas marcando seu rosto, rio caudaloso. Ela admirava a imagem mais bela do dia, sua imagem, não a do outro, mas não enxergava essa beleza que amava sem medo, porém imprudentemente. Viu que ela foi quem amou. Mas não viu que, mais uma vez, amou a si refletida no outro. Conhece-te a ti mesmo, estava escrito no templo de Apolo.
Talvez ela leve tempo para superar mais essa de amor. Talvez ela não suporte a dor e busque ajuda clínica. Assim, se aprofundará no aforismo grego. E não viverá uma vida tépida. Nem morna. Nem mais ou menos. Nem projetando no outro aquilo que é seu.  E assim, quando ela olhar no espelho e estiver lá um rio caudaloso, estará assumidamente. E respeitará ainda mais sua risada.


quarta-feira, 27 de maio de 2015

O meu corazón


   Sento-me para almoçar com ela, depois de servi-la. Passou a vida inteira sendo a última a sentar-se à mesa, cultura de seu povo em Barcelona. Agora, do alto de seus 93 anos, tem todo o direito de falar e fazer o que quiser e sou eu que me deleito a ouvir repetidas vezes suas histórias de cuando era niña.
   São situações contadas de forma randômica, e, incrivelmente verdadeiras, riquíssimas em detalhes. Posso mirar toda a paisagem, todo o ambiente das décadas de 20 e 30 do século passado. Estoy nas ruas de Poble Sec, nos bailes para namorá-lo, na loja de lustres de cristal.
   Antes disso, estoy sendo mandada para o interior, para la hacienda de mi abuela, com mis dos hermanitos, por causa do racionamento de comida durante a Revolução Civil. Passamos a noite viajando de trem, de Barcelona a Valencia, de Valencia a Alcoy. De Alcoy a Planes, tomamos un ónibus. E llego a Planes aos catorze anos, para ter o que comer e fazer companhia a minha amada avó.
   Vou trabajar na colheita de azeitonas, porque não sei quedarme inerte. Gosto tanto, que sou llamada para trabalhar em outras colheitas. Trabalho por duas e, por meu corazón compassivo, soy dupla de una enbarazada.
   Aos domingos, dia de descanso e de sol, o vento vem hacerme más feliz. Ao meio-dia, subo ao sótão da casa de mi abuela para ver o trigo no campo balançando dourado enquanto o vento, ah, el viento...
   Después, vuelvo a Barcelona, onde ando pelas ruas com uma moda só minha, porqué no tengo hermanas. Y miro a él. Él mirando a mi. Gosto dele porque tem el rostre pequeño, de carotas basta mi família. E ele é eletricista e me segue de longe, eu vejo. Eu gosto dele.
   É a vida dela que ficou em detalhes para mim. Se pergunto como foi a vinda para o Rio de Janeiro, de navio, ela não se lembra. Sei dos detalhes porque minha mãe, com sete anos na época da vinda, me contou. Meu avô veio antes para preparar a chegada dela e dos três filhos. E ele impediu que eles desembarcassem em Marrocos: imaginem uma linda mulher com uma filha loura de olhos verdes e dois filhos morenos, crianças de sete, cinco e três anos, passeando por Marrocos em 1952... Sequestro, na certa. Mas, ela não se lembra. Esta parte da história não é dela e sim de sua filha. E minha. Dela, é o meu corazón.




   

quarta-feira, 20 de maio de 2015

A lista


Me convidaram a fazer uma lista das coisas das quais eu não gosto, mas de forma divertida. Fazer listas é uma coisa que eu não gosto. Mas como me proponho a ser uma escritora profissional e toda vez que colocamos profissional junto a algum substantivo, temos que deslocar o adjetivo divertido para o fim-de-semana. Por isso, deixei essa lista para o último momento, para que eu ficasse desesperada e me lembrasse do que não gosto bastante pressionada mesmo, como quando trabalhava com metas e adoeci, para mencionar uma coisa da qual não gosto.
Eu gosto de dirigir. Mas não atrás de um caminhão de lixo. Inclusive, se o ar-condicionado estiver ligado, a sensação é de que eu comprei o “gleid chorume” e instalei no carro. Janelas abertas são a saída. E dar distância da solução de higiene urbana civilizada pós-moderna desenvolvimentista. Não sei como isso funciona na Alemanha. Tenho até um amigo que foi pra lá no início dos anos 90 para trabalhar com reciclagem. Tá rico. Mas, tenho certeza de que não é da forma que se faz aqui. Vou procurar saber.
Não gosto de ambientes muito arrumados. O caos me ressignifica. Eu penso que quando está tudo muito arrumado falta calor. Tem que ter um livro fora do lugar, um copo esquecido na ponta da mesa, as almofadas espalhadas no chão, como num convite para o conforto, marcas da presença humana. Tudo muito arrumado me lembra alguém que saiu de um SPA extremamente embotocado, sem conseguir mexer as sobrancelhas e a testa. Falta impacto. Por isso eu amo a Maria Callas: tudo nela é expressão, até as ondas dos cabelos.
Comida fria me irrita. Muito. Chego a levantar da mesa como um furacão, fazendo o barulho dele ao levar o telhado de uma casa, e abro com violência a porta do micro-ondas. Volto pra mesa gritando palavras de ordem do movimento “LAVAGEM NÃO!” Haveria muita majestade nisso, resquícios de vidas passadas, se não fosse eu a esquentar a comida no micro-ondas. Mas, a minha família ignora. E eu fico com cara de quem comeu e não gostou mesmo.
Muitas vezes, prisões afetivas se estabelecem sem que a gente perceba. Uma irmã chantagista, um pai cobrador, uma amiga excessivamente carente, um namorado mentiroso e, pronto: você está cativa e talvez não tenha se dado conta. Mas, como disse Rosa Luxemburgo, só quem se movimenta percebe as correntes. Essa é a função da Liberdade, a capacidade de nos fazer mover. E de perceber as moções da vida. Eu não gosto de prisões afetivas e quando as percebo, não gosto das pessoas que as construíram. Não tenho como escrever de forma divertida sobre isso, porque vejo o pior do ser humano nisso, coibir o movimento do outro, privar a liberdade, o prazer. Quando Rosa Luxemburgo fez sua citação, fazia referência à luta das mulheres por igualdade de direitos e quis que quando se percebesse as correntes, se lutasse para rompê-las. Termino minha lista aqui com este grito escrito dizendo que sou uma pessoa livre que não gosta de se sentir presa e que não gosta de quem a prende. E que farei de tudo para libertar e fazer sorrir qualquer mulher que se encontre em alguma prisão afetiva, mesmo sabendo que esta é a mais difícil de se libertar.