Estava na Avenida Automóvel
Clube, que é a mesma do shopping center onde levo minha família para almoçar aos
domingos, dirigindo atrás de um rabecão. A bem dizer, o rabecão parecia um
jatinho de tão velozmente que era conduzido. O motorista não respeitava
sinalização, fechava os outros carros e ultrapassava perigosamente. Parecia que
o defunto estava com pressa, assim, com medo de chegar atrasado ao próprio
enterro. Eu imaginei que este seria no Cemitério de Inhaúma, que é o campo dos
mortos mais próximo daquela região.
Até que, em
um cruzamento, o caminhão que vinha velozmente não conseguiu frear quando o
rabecão ultrapassou o sinal vermelho. O acidente foi espetacular. O carro da
funerária foi lançado longe e capotou. E dois defuntos foram expostos quando
seus caixões chocaram-se contra o chão e se desfizeram. O motorista se tornou o
terceiro defunto. O cenário do acidente era inacreditável: dois mortos no chão
preenchendo suas penúltimas moradas quebradas e outro ainda sangrando pelos
ouvidos, no chão também.
Quem
passava tinha dificuldade para entender. Porém, populares chamaram o Samu, os
bombeiros e a polícia militar. Na avenida, os carros paravam para ver aquela
cena surreal e um enorme engarrafamento se fez, atrasando ainda mais a chegada das
autoridades. Quando enfim chegaram, mais uma confusão foi armada. Eles não
sabiam qual dos três serviços públicos assumiria a responsabilidade pelos
mortos já nos caixões. O finado motorista, ainda quente, foi removido pelos
bombeiros, já que a causa mortis
tinha sido acidente de trânsito. A polícia militar tentava segurar no local os
integrantes da equipe médica do Samu, que nada podia fazer, já que só havia
restado dois mortos que já estavam mortos. Não queriam assumir a
responsabilidade por quem já tinha um atestado de óbito para chamar de seu.
O tempo
passava e os cadáveres continuavam no chão, somente tocados pelos pombos que
ainda faziam algazarra numa avenida tão trafegada. Os soldados da PM tiveram a
ideia de procurar o atestado de óbito dos dois dentro do rabecão capotado.
Quando um deles entrou no carro da funerária, seu peso o desestabilizou e este
acabou tombando de lado com o PM dentro, que quebrou a perna naquele momento.
Mesmo com este sinistro, o Samu não quis atendê-lo porque não queria avariar a
cena do acidente para uma possível perícia. O segundo PM não sabia o que fazer,
estava achando aquela missão complicada demais para seu entendimento. Acabou
chamando seu superior, o sargento Calçada, e continuou estarrecido com o
panorama tragicômico estabelecido naquela área tão próxima a um cemitério.
O sargento
Calçada demorou muito para chegar, porém, assim que o fez, entrou em contato
com a central de polícia para que a funerária fosse acionada. O gerente da
funerária chegou ao local, mas o Samu o alertou de que ele não poderia remover
dois corpos do chão de uma rua porque não era uma autoridade pública. A lei
teria que ser consultada. Como era domingo, o gerente não conseguiu encontrar o
advogado da funerária, então sentou no meio-fio e chorou. Nada havia a fazer.
O sargento
Calçada deu ordens para que seus soldados desafogassem o trânsito da região que
começou a fluir. E ficou dentro da viatura ainda avaliando que os
familiares não poderiam localizar seus mortos porque eles já haviam sido
liberados pelo Instituto Médico-Legal. O gerente da funerária parou de chorar e
ligou para os familiares, seus clientes, que, exasperados, cancelaram os
enterros.
Os corpos e
seus caixões ainda estão lá na Avenida Automóvel Clube, hoje, terça-feira,
aguardando a sentença de um juiz que seja inteligente o suficiente para
entender os trâmites desta situação inusitada.