Era um dia de entrega. Era um
dia de amor. Era uma tarde em que a luz entrava sorrateira pelas frestas das
persianas daquele apartamento na zona sul. A luz queria ser testemunha do que
estava explodindo sutilmente naquele quarto. Era o dia do encontro dos corpos
que se desejavam há mais tempo do que podiam suportar sem se tocar. Um par de
anos os havia separado. Era um amor sem pé nem cabeça, um amor de internet,
vingado por presságios benfazejos e tempo lento.
Um poema novo nascia no toque
das línguas e velhas canções preferidas brotavam dos poros que se esfregavam
nas peles da fêmea e do macho, pois era o que eles eram – um do outro –
permeáveis e sem limites. O que escutavam já estava na playlist que ele
cuidadosamente preparou para recebê-la. Conhecia a lista dos seus discos
preferidos, não era um só (quem tem um só disco preferido?), em todos eles tem
um blues cantado e tocado com cada átomo de cada célula desses corpos doadores
de essência musical para nos fazer uns humanos mais furiosos por essa coisa que
é vida. E a lista dela tocava embaralhada, fazendo-a apertá-lo por dentro. Elis
em “Os Sonhos mais lindos”, Billie em “Music for torching” e “Lady in Satin”,
Cassia em “Acústico” e todos seus outros, Jards Macalé em “Jards”, Amy em “Back
to Black” e Cazuza em “Exagerado” e “Ideologia”. Quando Elis cantou “Andança”,
os olhos se encontraram, namorada e namorado juraram que por onde forem querem
ser par um do outro.
E ele conhecia cada mexida das
sobrancelhas dela, cada respiração, de tanto observá-la pela tela de seu
computador, sabia o que ela queria e deixou que a luz que entrava pelas frestas
das persianas iluminasse seus olhos só para que ele visse que aquele olhar
profundo estava ali, desvendando-o, talvez para sempre, talvez só por alguns
meses, mas que naquele momento sincero representava um encontro tão velho, um
encontro tão sentido, um encontro que só “It had to be you” na voz de Billie
Holiday poderia explicar ao se juntar aos movimentos que ele fazia para
anexá-la ao seu corpo.
Eram mais de mil músicas e elas
tocaram sem parar durante dias e eles só se separavam para respirar. Só a luz
do dia e da noite foi testemunha da realização daquela parceria amorosa,
poética e musical.