domingo, 28 de junho de 2015

Encontro sincero



Era um dia de entrega. Era um dia de amor. Era uma tarde em que a luz entrava sorrateira pelas frestas das persianas daquele apartamento na zona sul. A luz queria ser testemunha do que estava explodindo sutilmente naquele quarto. Era o dia do encontro dos corpos que se desejavam há mais tempo do que podiam suportar sem se tocar. Um par de anos os havia separado. Era um amor sem pé nem cabeça, um amor de internet, vingado por presságios benfazejos e tempo lento.
Um poema novo nascia no toque das línguas e velhas canções preferidas brotavam dos poros que se esfregavam nas peles da fêmea e do macho, pois era o que eles eram – um do outro – permeáveis e sem limites. O que escutavam já estava na playlist que ele cuidadosamente preparou para recebê-la. Conhecia a lista dos seus discos preferidos, não era um só (quem tem um só disco preferido?), em todos eles tem um blues cantado e tocado com cada átomo de cada célula desses corpos doadores de essência musical para nos fazer uns humanos mais furiosos por essa coisa que é vida. E a lista dela tocava embaralhada, fazendo-a apertá-lo por dentro. Elis em “Os Sonhos mais lindos”, Billie em “Music for torching” e “Lady in Satin”, Cassia em “Acústico” e todos seus outros, Jards Macalé em “Jards”, Amy em “Back to Black” e Cazuza em “Exagerado” e “Ideologia”. Quando Elis cantou “Andança”, os olhos se encontraram, namorada e namorado juraram que por onde forem querem ser par um do outro.
E ele conhecia cada mexida das sobrancelhas dela, cada respiração, de tanto observá-la pela tela de seu computador, sabia o que ela queria e deixou que a luz que entrava pelas frestas das persianas iluminasse seus olhos só para que ele visse que aquele olhar profundo estava ali, desvendando-o, talvez para sempre, talvez só por alguns meses, mas que naquele momento sincero representava um encontro tão velho, um encontro tão sentido, um encontro que só “It had to be you” na voz de Billie Holiday poderia explicar ao se juntar aos movimentos que ele fazia para anexá-la ao seu corpo.

Eram mais de mil músicas e elas tocaram sem parar durante dias e eles só se separavam para respirar. Só a luz do dia e da noite foi testemunha da realização daquela parceria amorosa, poética e musical.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Velozes minutos



   As feridas necrosadas em sua perna se espalhavam com rapidez, assim como os cigarros que acendia se extinguiam em velozes minutos. Deitada em sua cama, ela observava a brasa consumindo o tabaco, com a rapidez com que seus dias não passaram em toda a sua vida. Agora, aguardava o fim dela, observando seu corpo se deteriorar, era só uma questão de tempo, desse tempo que tinha sempre brincado com ela.
   Sempre. Sempre os outros, sempre pra já, sempre depois. Essa era a existência de Primeira, estabelecida não por valoração interna e sim por uma condição de passagem, de urgência, de deixar de ser.
   Aguardava a chegada de Segunda, com sua habitual secura na voz e nos gestos. Não podia culpá-la, pois a tinha moldado assim, para o enfrentamento dos tempos, dos dias e das noites. Segunda chegou e, surpreendentemente estava doce. Trazia chocolates que, mesmo sabendo proibidos, queria que Primeira desfrutasse, pois talvez aquela fosse a última de Primeira.
   O gesto demorou os minutos e Primeira demorou nos lábios um sorriso derretido de cacau que as aproximou como se aproximam plantações inteiras na hora da colheita. Foi a presença da foice abrandando o coração de Segunda, avisando que sempre há tempo e que há que se fazê-lo elástico e compassivo.
   Nada foi dito, nem houve sequer uma lágrima rolada. Talvez uma respiração suspensa, imperceptível, e sim, houve um olhar trocado, durante um demorado meio minuto em que verdades expressas desveladas se fizeram presentes. Sustentaram assim aquele silêncio, mulheres de fibra. Quem é capaz de tal feito?


   Primeira desviou então o olhar para a caixa de chocolates, esquecendo-se dos cigarros. Segunda ouviu barulho na porta. Deviam ser Terceira e Quarta chegando da rua, uma do trabalho, a outra da escola. Terceira cuidando de Quarta, muito confidentes, Segunda estava tranquila. O que não sabia é que Quarta, às gargalhadas, muito confiante, acabava de segredar à Terceira que na parte da manhã havia passado no posto de saúde da Prefeitura, pois tinha visto um anúncio no ônibus informando que lá se distribuíam preservativos gratuitamente e que, como começou a namorar com Primeiro, quer fazer uma história diferente das que conhece.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Reflexo


Aquele reflexo no espelho dizia tanta coisa... Ela olhava tão profundamente para dentro de seus olhos que tinha a sensação de ser um outro alguém, em outro lugar, num universo paralelo. E sentia-se bem naquele estado, já que o estado das coisas era tão complexo, tão outro, tão inimaginável para ela.
Tinha sentido uma dor tão aguda e funda. Por quê? Porque nenhum de seus projetos a dois tinha tido êxito. Tudo que construíra em seus sonhos ruíra no alternar das estações do ano. Quem era ele? Ela desconhecia. Não era aquele que se apresentara, aquele que a beijara, que a encantara. Não era quem a convencera a romper fronteiras e que dissera que a amava.
No espelho, seus olhos brilhavam cheios das lágrimas ainda indecisas. O rosto dele estava à sua frente, aquele sorriso que a inebriava. Podia sentir o roçar das peles e o perfume que ele usava, como se ali ele tivesse se materializado.  Não percebia, porém, que as virtudes que incutiu imaginariamente nele vieram de uma personalidade que seria somente a dela. Ainda não haviam dito a ela que a vida é muito curta para ser pequena, e que, desperdiçá-la com pessoas pequenas é deixar de viver.
Estava incrivelmente linda com as lágrimas agora decididas marcando seu rosto, rio caudaloso. Ela admirava a imagem mais bela do dia, sua imagem, não a do outro, mas não enxergava essa beleza que amava sem medo, porém imprudentemente. Viu que ela foi quem amou. Mas não viu que, mais uma vez, amou a si refletida no outro. Conhece-te a ti mesmo, estava escrito no templo de Apolo.
Talvez ela leve tempo para superar mais essa de amor. Talvez ela não suporte a dor e busque ajuda clínica. Assim, se aprofundará no aforismo grego. E não viverá uma vida tépida. Nem morna. Nem mais ou menos. Nem projetando no outro aquilo que é seu.  E assim, quando ela olhar no espelho e estiver lá um rio caudaloso, estará assumidamente. E respeitará ainda mais sua risada.