quarta-feira, 28 de outubro de 2015
Supermercado
Foram os dois ao supermercado, levando, pela primeira vez, o boneco que
fizeram há dois anos. Quinto dia útil do mês, como sempre e o astral deles no
alto, como sempre. Supermercado era uma experiência antropológica: ela,
professora-doutora em Comunicação e Imagem, ele, doutorando em Ciências
Sociais, classificavam o humor das pessoas estratificando-as segundo os
pensadores que conheciam. Riam muito. E, desta vez, o júnior, molequinho
quieto, só observava, mesmo com dois anos de idade, balbuciando ainda mamã
e papá.
Mas, neste mês, o supermercado estava mais do que cheio. O quinto dia
útil caiu em véspera de feriado e havia promoção de cerveja, carnes e artigos de
limpeza. Os corredores pululavam. O casal entrou com seu carrinho habitado
pelo júnior e se dirigiu para o corredor de cereais. Fizeram um espaldar de
arroz, feijão, açúcar, ervilha, lentilha, feijão fradinho e grão de bico para o júnior
ficar bem acomodadinho. Amavam tanto aquele boneco, que se encaixou
perfeitinho nos cereais e ficou deslizando os dedinhos nas grades do carrinho.
Passaram na seção de biscoitos, abriram um pacote do delicioso Maizena e
entregaram para a criança, que, no aspecto comida, gabaritava.
Ele resolveu pegar outro carrinho e encher com os artigos de limpeza e os
artigos de lazer (churrastay or churraigo?) e, pela primeira vez, fizeram as
compras separadamente. Ela entrou no modo mecânico e foi enchendo o
primeiro carrinho com os itens para prover a despensa. E foi ficando cheio. Ao
chegar na seção de hortifrutigranjeiros, um funcionário estava abanando o
depósito das cabeças de alho. As peles de tom levemente rosado voavam por
todo espaço do hortifrúti e ela sentiu-se na festa das cerejeiras no Japão, que é
quando famílias nipônicas se reúnem em parques para assistirem as árvores
florescerem todas ao mesmo tempo. Não que já tivesse ido ao Japão, mas ela
tinha a capacidade de se transportar para um lugar mesmo tendo visto apenas
um documentário sobre o tema.
Estava assim enlevada, quando ele chegou. Ela olhou para ele sorrindo e
falou sobre a epifania das cerejeiras. Ele olhou tão fundo dentro dos olhos dela e
tascou-lhe um beijo apaixonado. A seção de hortifrúti parou para observá-los.
Quando terminaram, ela suspirou e escondeu o rosto em seu ombro. E ele
perguntou:
- Amor, cadê nosso bonequinho?
- Cadê? Cadê? Meu Deus! Tá soterrado pelas compras! Tira! Tira!
- Amor, calma, ele tá respirando, não chora, amor, calma. – Ele disse
rindo.
- É essa minha Lua em Peixes, eu sou uma desnaturada. Olha, o pacote de
biscoito tá pela metade, ele vai passar mal...
- Deixa ele dormindo aí, ele tá quietinho, só bota essas compras aqui no
meu carrinho, minha aluada maravilhosa. Leva este carrinho aqui e deixa que
eu termino com os os legumes. Vai lá fora tomar um café. O supermercado tá
cheio, a gente não tava junto... Para de chorar.
E ela foi, com a certeza de que mesmo naquele dia em que fizeram
compras separados, estavam cada vez mais juntos.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
Tempo de cair
Corro de uma depressão galopante
Que dá sinais
Em detalhes agressivos
Os outros se queixam
Das gotas que caem
Dos meus cabelos
O outro não me coloniza
Porque o tempo é de cair
O tempo e o outro são o inferno
El Niño e Foucault se abraçam
Enquanto as gotas escorrem pelos meus ombros
E encontram o bico do seio
Nada há a alimentar
A não ser mais uma volta na espiral
Até chegar novamente
Ao ponto em que se é
Enquanto isso,
Destroem-se sonhos
E a gana de beber da seiva da Terra
domingo, 25 de outubro de 2015
Volume morto
O lume fosco
de uma tarde asfixiada
em vão cintila
reflete fraco
no volume morto
de água pós-transcontinental
contenções necessárias se fazem
recessão de sedes
recessão de salivas
recessão de lágrimas
razão do lume fosco.
de uma tarde asfixiada
em vão cintila
reflete fraco
no volume morto
de água pós-transcontinental
contenções necessárias se fazem
recessão de sedes
recessão de salivas
recessão de lágrimas
razão do lume fosco.
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
Os caracóis subiam pelas paredes
Os caracóis subiam pelas paredes. Aquele jardineiro antigo, com jeito de capataz, quis jogar sal nos caracóis. Talvez por vingança, já que jogaram sal nas feridas dos seus antepassados. Não, aquilo já era uma questão de saúde pública. Mas, havia um, com uma concha muito colorida. Aquele eu proibi. Neste ninguém toca! E o antigo jardineiro, com doçura no olhar, a doçura dos jardineiros, entendeu meu pedido. Ele percebeu que aquele caracol colorido conviveria bem com flores. Principalmente as da pimenta. Com girassóis também, resplandecentes de sol forte, 40 graus.
No Córrego Beija-Flor a vida corria assim. Com toda a maldade que Deus sabe fazer. Caracóis morriam e humanos morriam junto. Vida de merda. Vida poética e de merda.
Mas Deus, numa de suas passadas por estas paragens terráqueas, quando Ele se vestiu de Buda, com sua generosidade divina, brindou uma jovem mãe com um pedido. Ela havia perdido seu bebê, e, por intenso amor terreno, não queria enterrá-lo, andava pela aldeia com o corpinho sem vida fruto de seu ventre no colo, desesperada. Alguém levou-a até Sidartha , que ouviu sua súplica por ter a vida de seu filho de volta. Buda pediu então, que ela conseguisse três sementes de mostarda. Porém, as sementes teriam que ser de um arbusto de mostarda plantado no quintal de uma casa em que a família não tivesse perdido nenhum amado. A jovem mãe começou uma nova peregrinação, ainda agarrada àquele amor ido. Toda casa indiana tem um pé de mostarda. Ela chegava a cada casa e perguntava: – A senhora poderia me dar três sementes de mostarda? – Sim, era a resposta. E ela: – Mas, a sua família já perdeu alguém? – Sim, era a resposta. Ela então agradecia e ia bater em outra casa, incansável. Até que chegou à casa de uma sábia, sim ela era idosa, os sábios são idosos, de corpo ou de alma ou de corpo e alma. A jovem mãe repetiu sua ladainha. A sábia disse, com voz divina: – Filha, não há família que não tenha perdido um amado. A jovem mãe sentiu as palavras como gume em seu peito. E compreendeu. Voltou para sua aldeia, voltou para o seu lar, e enterrou o corpo do seu amor, agora entregue ao divino.
No Córrego Beija-Flor estavam sendo usados pesticidas. Aquele jardim, naquele momento, estava precisando de pesticidas. Para acabar com a peste, com o mal. E com a confusão. Pesticidas devem ser usados, do jeitinho de que quem receitou falou. Porque há amor naqueles que receitam pesticidas. Eles sabem o que fazem. Não permitem que jardins se estraguem.
O jardineiro, ah, ele se chama Tião da Rita, cuida com muito amor de seu jardim. Pesticida na hora certa. Pesticida com compreensão. O Tião da Rita revolve a terra, faz com que ela respire, se renove. O Tião da Rita quer seu jardim muito florido, para que seu caracol colorido seja feliz entre as flores da pimenta e os girassóis.
quarta-feira, 7 de outubro de 2015
Sorte cega
Pode ser que um dia
Chegue o dia
Em que a gente dê
Aquela sorte cega
E que, enfim,
Nossas frontes se façam
Presentes em nossas frentes
Nessa batalha campal
Do nosso estar,
Do nosso conseguir estar.
Que esse meu desejo
De te tocar
Saia do forno,
Queimado,
800 graus,
Como escultura
Da minha argila,
Em que moldo
Opiniões, saberes e vontades.
Me moldo.
Esperando a sorte cega,
A admirar a peça
Do meu desejo,
Em exposição.
sábado, 3 de outubro de 2015
Conto sem adjetivo.
Da preguiça.
Aquele era o dia de não querer nada. Tinha que fazer exame
de sangue, e, até para isso, preferiu pegar um táxi a encarar um ônibus até
seis pontos abaixo na avenida do bairro. Não tomou banho. Pediu para a
atendente do laboratório duas porções a mais de biscoito, ao tomar o
café-com-leite. Nem tinha se dado conta de que até seu sangue demorou mais para
encher o tubo de ensaio do que nas outras vezes. As porções a mais de biscoito
eram para não ter que mexer nos botões do fogão, conseguiu pensar. Na rua, pegou
outro táxi, para pagar com um dinheiro que não era seu, que deveria devolvê-lo
naquele dia mesmo. Subiu as escadas, somente um lance e entrou em casa. Não
quis olhar a janela. A ida à rua satisfez sua impaciência. Não quis livro. Não
quis TV. Apenas estatelou o olhar na sanca do teto. Quando escureceu,
desabotoou o jeans, puxou a coberta, virou de lado e dormiu.
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