terça-feira, 19 de abril de 2016

Êxtase



Quando Hans chegou à quadra da Mangueira, a bateria já estava no esquenta. Isso porque seus amigos cariocas haviam feito seu próprio esquenta do lado de fora, tomando cervejinha e fazendo questão de inserir o alemão no jeito carioca de ser. Do lado de dentro da quadra, Hans se impressionou com aquela sonoridade tão peculiar para seus ouvidos germânicos e olhou tudo ao seu redor, toda aquela gente rindo e bebendo, gingando para um lado e para o outro, cheia de uma alegria semanal, despontada pelo torpor necessário a alguma sanidade urbana.
Hans foi contagiado pela leveza de seu agir e deixou de contaminar seus parceiros de pesquisa científica (seus amigos no Rio de Janeiro) com a polidez e a distância de uma quarta parede imposta por atitudes germânicas. Ele sorria e se maravilhava com o samba da Mangueira. Bebia e falava em Português efusivamente, ciente de que também era parte daquela massa festiva.
O que ele não esperava era a entrada de toda a bateria para o início do samba-enredo. A musicalidade dos bumbos, tan-tans, ripiniques, tamborins e chocalhos invadiu seus ouvidos de tal forma que seu rosto tinha a expressão de um sobressalto, de um espanto, de um maravilhamento próximo a uma conquista bárbara. Êxtase e paixão eram os sentimentos que o dominavam, a ponto de deixá-lo estático e boquiaberto. O gringo não aguentou a pressão da mais pura carioquice naquele fim de primavera no Rio de Janeiro. Seu amor pelo samba explodiu.
E ficou assim, bobo, observando e sendo observado na quadra da Mangueira, encantado com os quadris e os pés das passistas, enlevado pelo tremular do pavilhão verde-e-rosa, dignamente defendido pelo mestre-sala e sua porta-bandeira. Seus amigos entenderam tanto brilho no olhar e o deixaram aproveitar aquele momento único, marcante, inesquecível para um alemão esforçado em se entrosar.
Eles perceberam esta vontade nele quando, num bar da Lapa, atendendo a um pedido maroto, ele reproduziu em alemão uma piada muito carioca, a da aranha surda, e todos, de pilequinho, riram até se acabar. Hans tirou muitas fotos da Lapa à noite e ficou de voltar de dia, de preferência acompanhado com a amiga da mulher de um dos pesquisadores, aquela que não tinha seios tão grandes assim para um critério alemão.
Porém, na quadra da Mangueira, alguém o tirou do encantamento empurrando outra lata de cerveja. Ele suspirou. Jamais esqueceria a maior experiência auditiva de sua vida. A maior experiência de comunhão com a alegria de um povo feliz, ciente de sua luta, e que extravasa a dor no samba e pelo samba.




sexta-feira, 15 de abril de 2016

L’Origin du Monde



Ele veio
Da Origem do Mundo
E por não poder
Amá-la,
A clama em constantes negações.

Ele veio
Do seio da Terra
E por não poder
Cultivá-la,
A semeia em paredes de erosões.

Ele veio
Da grota da água
E por não poder
Sorvê-la,

A transpira por todos corações.



Imagem: L'Origin du Monde - Gustave Courbet





quarta-feira, 6 de abril de 2016

Os que por aqui passaram perderam a esperança



            Mefisto, Belzebu, Hades. Não tenho mais moedas para a boca de Caronte. Há correntes de lava a me impedirem de me lançar ao Rio Estige. Só me resta o Inferno.
            Uma certeza me assalta: não sou descendente de Perséfone, não tenho metade do ano no Olimpo, nem passarei essa existência funerária em tranquilidade, harmonia e paz.
            Fagulhas da vontade se apagaram, o olhar para o horizonte se perdeu em um embaçamento, uma catarata dura, uma cegueira adquirida através de portas na cara e grave indisposição para o sucesso. Um sumidouro do prazer se formou neste rio em que sou sempre o mesmo.
            Desimportância e esquecimento. Nem mesmo uma ponta de coragem a me impelir ao homicídio de um verme inerte que encontro no espelho abusado a refletir algo que teima em subsistir. Não me olhe porque não te enxergo, oco de carne ainda irrigada.
            Da margem do Rio Estige posso ler o que há em cima dos portões do Inferno: “Os que por aqui passaram perderam a esperança.” Vago com os olhos no chão, sem nem mesmo procurá-la.


           

            

terça-feira, 5 de abril de 2016

Coisas que me acontecem



Entre duas aulas realmente maçantes, somente a bebida das Arábias para reanimar. Quando as cabras mascavam as folhas de determinados arbustos, ficavam mais ágeis, mais dispostas, e, assim, seus donos passaram a fazer chá daquelas folhas. Do chá revigorante até a beberagem negra de hoje, é o café que nos coloca em pé novamente, prontos para encarar desagradáveis afazeres necessários.

 Pois bem, estava eu em pé em um balcão de um respeitável boteco de esquina no Centro do Rio, com a deliciosa imagem da origem do café na mente, quando sou abordada por alguém que me diz que é seu aniversário e gostaria de beber uma dose de 51. Sorri, mais pela sinceridade do homem à margem do que pelo fato de ser meu aniversário no dia seguinte. Pedi ao atendente o meu café e uma dose de 51 aqui pro aniversariante. E falei pro homem que adoro sinceridade porque são poucas as pessoas realmente sinceras e desejei-lhe paz e saúde naquela data. A dose de 51 chegou e o atendente estava generoso, mas o homem mandou que ele parasse na medida comercial. E colocou a mão no bolso da calça esmolambada. Tirou dali um celular, foi o que vi pelo escondido da mão, e começou a falar discretamente, como se estivéssemos em Wall Street. De estarrecida, resolvi alterar meu estado e tomar meu café. E ele nada de beber a cachaça, nem de terminar sua ligação. Ele chamou o atendente, que não o atendeu, pois estava do lado onde estava o celular e então finalmente encerrou a ligação. O celular era uma simples carteira de plástico da Caixa Econômica Federal. Naquele momento compreendi tudo e perguntei delicadamente se ele não ia beber a 51. Ele disse que não porque não sabia quem ia pagar. Eu disse que era um presente meu pelo aniversário dele. Ele disse que tinha pouca cachaça. Eu perguntei se ele não se lembrava de que ele mesmo tinha mandado o garçom parar de servir. Ele pegou minha mão, beijou-a, pegou o copo de cachaça, virou de uma vez só, Deus lhe pague! E foi embora.

Ter suprido um desejo de um bêbado à margem no dia do seu aniversário foi gratificante para mim, porém, ver o surto, uma alucinação acontecer me causou mais compaixão ainda. Vocês talvez me critiquem por ter dado cachaça a um bêbado, mas naquela situação, o telefone tocar para negociar ações enquanto tomava um drink ao lado de uma dama, creio que foi um bom presente de aniversário, para ele e para mim.