segunda-feira, 28 de março de 2016

Foi assim



“Foi assim, seu delegado: caiu um raio que o Senhor Jesus mandou e matou eles todos, depois da ventania apagar a tocha que ia tocar fogo no micro-onda que o Clairton estava. Matou eles, mas jogou o micro-onda pro alto, porque a borracha é isolante, o senhor sabe. Só que quando caiu no chão, o micro-onda com o Clairton dentro foi rolando ladeira abaixo, rolando, rolando até chegar na metade do morro onde eles tinha feito uma barreira de cimento. É por isso que Clairton não consegue dizer coisa com coisa, ele tá tonto até hoje de tanto que rodou dentro do micro-onda que o Senhor Jesus fez de proteção do raio. Foi uma bença, um livramento. Eu não ligo dele tá assim doidinho, o Senhor Jesus é maior, vai fazer ele voltar a falar as coisa normal logo, logo. A pastora lá da igreja já fez o culto glorificando esse meu livramento do meu filho.

Mas ele foi parar dentro do micro-onda por causa da briga que eu tive com a piriguete da Keisiany, que era uma das mulheres do Jorge mão-de-urso, o chefe do morro. A gente tava na lan house do morro porque eu tinha que matricular o Samuelzinho, meu neto, filho do Clairton meu filho, no primeiro ano e era o último dia. A rampeira queria que o menino da lan house passasse ela na minha frente e eu já tava muito enfezada com ela e sem mesmo ela falar, larguei a mão na fuça daquela piranha, que eu não sou de levar desaforo pra casa. O senhor me desculpe esse meu jeito de falar, mas eu sou assim mesmo, o que eu tenho que dizer eu digo mesmo, sempre foi assim e não vou levar nada pro caixão não.

Aí ela veio pra cima de mim, querendo arrancar os meus bobs porque eu tinha acabado de alisar meu cabelo, na minha idade a gente ainda faz isso, e tinha sido lá no cafofo da Auxiliadora, que é lá que eu aliso o cabelo, que a Dona França me contou que tinha visto a Keisiany sair do meu barraco com uma sacola de mercado na mão. Aí eu entendi que Satanás tinha mandado ela. Foi ela, seu delegado, que tinha roubado o saco com o último resto de arroz da minha prateleira e me fez descer o morro de novo pra comprar arroz pra poder eu fazer a marmita do meu filho Clairton ir trabalhar no dia seguinte. Mas eu dei muito na Keisiany por causa que tenho braço de lavadeira, mesmo tendo essa minha idade, ela saiu sangrando.

Eu sei que começaram a espalhar que ela fez queixa pro Jorge mão-de-urso e ele jurou que o Samuelzinho ia ficar sem pai e eu sem filho. Mas Deus é mais! Eu orei demais ao Senhor Jesus, que é o quarto homem da fornalha e Ele mandou aquele raio que queimou Jorge mão-de-urso e os cupincha dele e mandou meu Clairton pro alto, protegido pela borracha dos pneu.


Acabou que foi um livramento por agora, porque se o senhor não mandar encher o morro com sua gente, vai começar a guerra entre os comando pra ver quem é o novo chefe e vai ser aquela chuva de bala perdida e os inocente pagando o preço dessa vida maldita. ”

quinta-feira, 24 de março de 2016

Reflexo


Aquele reflexo no espelho dizia tanta coisa... Ela olhava tão profundamente para dentro de seus olhos que tinha a sensação de ser um outro alguém, em outro lugar, num universo paralelo. E sentia-se bem naquele estado, já que o estado das coisas era tão complexo, tão outro, tão inimaginável para ela.
Tinha sentido uma dor tão aguda e funda. Por quê? Porque nenhum de seus projetos a dois tinha tido êxito. Tudo que construíra em seus sonhos ruíra no alternar das estações do ano. Quem era ele? Ela desconhecia. Não era aquele que se apresentara, aquele que a beijara, que a encantara. Não era quem a convencera a romper fronteiras e que dissera que a amava.
No espelho, seus olhos brilhavam cheios das lágrimas ainda indecisas. O rosto dele estava à sua frente, aquele sorriso que a inebriava. Podia sentir o roçar das peles e o perfume que ele usava, como se ali ele tivesse se materializado.  Não percebia, porém, que as virtudes que incutiu imaginariamente nele vieram de uma personalidade que seria somente a dela. Ainda não haviam dito a ela que a vida é muito curta para ser pequena, e que, desperdiçá-la com pessoas pequenas é deixar de viver.
Estava incrivelmente linda com as lágrimas agora decididas marcando seu rosto, rio caudaloso. Ela admirava a imagem mais bela do dia, sua imagem, não a do outro, mas não enxergava essa beleza que amava sem medo, porém imprudentemente. Viu que ela foi quem amou. Mas não viu que, mais uma vez, amou a si refletida no outro. Conhece-te a ti mesmo, estava escrito no templo de Apolo.
Talvez ela leve tempo para superar mais essa de amor. Talvez ela não suporte a dor e busque ajuda clínica. Assim, se aprofundará no aforismo grego. E não viverá uma vida tépida. Nem morna. Nem mais ou menos. Nem projetando no outro aquilo que é seu.  E assim, quando ela olhar no espelho e estiver lá um rio caudaloso, estará assumidamente. E respeitará ainda mais sua risada.


quarta-feira, 16 de março de 2016

Um



O aperto no peito vem e vai, sobe e desce como uma gangorra. Lembro que para brincar de gangorra são necessários dois. Um peso lá, um peso cá. O que pesa mais? Subo no escorrega, bem alto. Para o escorrega só precisa de um. E vem o vento rápido balançando os cabelos até chegar ao chão. Areia.

Na areia da praia só precisa de um para olhar o mar, para suspirar. Fica melhor se tiver dois para espalhar o protetor solar. Pele.

Nem sempre se precisa de dois para uma lambida no bico do seio. Nem sempre. Um roçar de perna no lençol pode ser só seu, de mais ninguém. Curta.

Curta pode ser a beleza de entrar numa roubada, escolha de um. Esticar a ilusão até onde deixa de valer a pena a adrenalina, o frisson, o tesão. Se mostrar para todos, o tendão exposto das fraquezas que não liga mais o movimento da alegria. Sofrimento.

Sofrimento é coisa de um. O outro não está nem aí. Dois não é par. Dor física em cima do chão e debaixo do céu. Nenhum lugar é neutro, nenhum lugar é paz. Paz.

Branco é todas as cores. Azul, amarelo e magenta são unas, respectivamente. Verde é duas e é sustentável. Precisa-se de dois mesmo? O preto é ausência de cor. Luto.

Luto por mim, já lutei por dois. Casal, dupla, par, parelha. Parceria. Nós. Cada vez mais emaranhada a linha dessa vida, necessitando de tesoura. Estanca.

Corda de piano arrebentada, foi o Sol. Lá Si vai um encontro, uma partitura. Lá Si vai um concerto. Orquestra sem batuta.

Bato na porta do meu peito, insisto que se abra. Insisto em me perguntar como gastar o que me resta de juventude, antes que o espelho que reflete um seja somente nostalgia. Insisto que a dignidade que me sobra me mantenha una, me mantenha em riste. Me mantenha triste.

Insisto que devo ir embora de mim. Insisto que devo pegar uma primeira classe para Nova Iorque. Insisto que devo sofrer para sempre. Só. Um.




terça-feira, 15 de março de 2016

Carta para a escritora preferida

Hilda Hilst,

Te ler é sempre uma batalha entre a adoração desmedida e a compreensão do mais profundo sentimento expresso na Língua Mãe. Batalha porque teu nome já profetizava que em tuas linhas agressivas e suaves, tu atacarias o papel e atacarias a empatia de quem mergulha em teu sistema inebriante: impossível não te venerar.
            Guerreira intensa do sentir, tu me ensinas que a obviedade é razão do dia a dia, e que o raro é o que deve ser mantido no papel ou em papiros, de onde a beleza de tua obra raia, mostrando toda a ancestralidade de tua genialidade única.
            Bebo tuas palavras, absorvo tua obra tão vasta, tuas poesias tão minhas porque te busco, mestra, em minha verve e meu estilo. Me vejo pobre, vazia de tua sabedoria e te devoro em cada verso, cada estrofe, cada livro.
Enxergo que “Tu não te moves de ti” principalmente quando chocas o Brasil divertindo-se com “O caderno rosa de Lori Lamby”. E te admiro por tua leveza e intensidade, atributos de guerreira cujas armas são a pena leve e o tinteiro intenso.
Sim, tu me pareces noturna e imperfeita e é por isso que te amo e que me chamas uma vez apenas, não preciso ouvir “Dez chamamentos” teus. Tuas contradições são o que há de mais belo na alma humana e tua força reside em expô-las como o feto abortado do estupro do lugar-comum. Nunca.
Te amo. E sigo também noturna e imperfeita, errante neste caminho de escritora. Vejo teu reflexo em tudo que escrevo e digo a mim mesma que ainda falta muito, migalhas vocabulares em universos linguísticos.
Mergulharei em nosso próximo encontro com a certeza dourada de te ver em tua Casa do Sol, rodeada por teus oitenta cães e por tua criatividade gigantesca, norte do meu desejo.

Tua maior fã,
Stella.


sexta-feira, 11 de março de 2016

Flâneuse



Resolveu aproveitar o tempo livre daquela tarde de outono caminhando pelas ruas do bairro. Não tomaria a rua principal, e sim as adjacentes, para ver se encontraria o que faltava para se completar.  Saiu andando em seu passo marcial, apesar de seus sapatos de salto 5, mas já estava acostumada, eram confortáveis. O olhar tentava divisar a frente, porém o queixo pesava e ela acabava olhando para a calçada, procurando, procurando.
Os garis haviam limpado as ruas, ela não conseguia encontrar o que a fizesse se sentir melhor, resolveu enveredar pela rua principal, mais movimentada, talvez a confusão a completasse, talvez a completude se fizesse através da desorganização, sim, era isso.
Ao alcançar a esquina barulhenta, sentiu-se bem. A quantidade maior de pessoas a acolheu, mesmo oferecendo seus semblantes hostis e apressados. Respirou profundamente. Olhou para frente, mas, novamente, o peso do queixo empurrou a cabeça e os olhos para baixo e a presenteou. Agora, com o passo mais lento, ela conseguiu encontrar peças para seu encaixe. Um chiclete mastigado. Um caco de garrafa verde. Um cílio postiço. Uma papeleta de “compro ouro”.  Pensou nas suas joias. E na sua maior joia: ela mesma e seus esforços e conquistas em sua vida. Crescimento.
Sucesso. As imagens das peças de seu encaixe a fizeram olhar para frente, ainda sem sorrir, mas olhando para frente, enxergando dentro de si mesma, só ela. Um mosaico compreensível somente para quem põe o coração à larga.
Um frentista passou exalando gasolina pura. Ela se virou para seguir o cheiro, chegando a andar de costas. Nunca ligou muito para quem critica excentricidades, e, andar de costas era uma de que gostava de praticar. Observou o macacão gasto do frentista jovem, notou que ele enxuga a mão de combustível no bolso traseiro direito.  Lembrou-se de que ela enxuga a sua no bolso direito da frente de seu jeans preferido. Ele sentiu o olhar dela, virou-se, ela se desconcertou e virou rápido e deu uma corridinha. Gostou. Resolveu correr, mesmo com seu confortável salto 5. Sua bolsa estava incrivelmente leve. As pessoas olhavam assustadas para ela, que estava na calçada na mão invertida do tráfego. Não havia desculpa para a corrida. Ela não ia pegar nenhum ônibus. Somente corria. E sorria.
Correu por duzentos metros. Parou num boteco.
– Moço, me dá água.
– Com ou sem?
– Com.
Bebeu no gargalo. Rapidamente. Pagou. Percebeu que a anestesia em que estava mergulhada havia se dissipado. Ela havia acabado de flanar por si mesma. Voltou para casa flanando pelo bairro.


terça-feira, 1 de março de 2016

Doce


Apontei um dos dedos para a porta de entrada das minhas fraquezas. Bondade, paixão, violência. Meu crush. Na sua camisa branca iluminada pela luz negra, refletia uma rosa mais negra ainda, dark rose do meu jardim cadavérico, sedento de uma nutrição amaldiçoada, que só chegaria pelo doce que ingeriríamos em alguns minutos e que nos levaria ao estado em que eu te possuiria. Só assim.
            Na ponta do meu dedo estava o seu sorriso, que chegou até mim escancarado, com a língua já para o alto. E se dissolveu em um beijo, captura feita na sequência de beats mais graves que a deejay lançou de encontro aos beats do meu peito profundo, de onde rosas escuras abriam e se fechavam, de acordo com a fluidez do sangue pelas suas cavidades.
            Te prendo assim, no doce de meus dedos e meus lábios, esperando o exato momento da nossa onda me prender de encontro à parede e eu mais e mais te prender, nas minhas pernas e na minha carne.
            Não, nada nem ninguém muda isso. Não quero ser forte, não quero você em um espaço onde haja outra luz que ofusque os neons das nossas sinapses mútuas, lentamente cognitivas, oleosamente falantes. Quero te entender assim, brilhante e escuro, inteiro e apartado, noctívago e assíduo.
            Bondade, paixão, violência. Fraca e dominante. Pele de escamas lisas, carne trêmula, carpa dentro d’água. Respiro na tua saliva, que me inunda até aquelas horas em que o sol se descobre astro maior e invade a cidade com seus raios corajosos.
            Nossos corpos se despedem até o próximo enlouquecer. Quando minhas fraquezas viram fortalezas. Quando a noite se faz mais doce. Na hora da rosa escura florescer e do peito profundo inundar.