Cirene foi uma criança
caladinha. Não tinha muito o que falar, só observava mesmo. Crescera assim sem
voz, guardando dentro de si a alvorada do mundo. Uma plenitude de emoções
infantis, caçula que era, as benesses da família eram para ela.
Casou-se e mudou-se para o país
dos espinhos. O noivo, quando passou a ser marido, se transformara em algoz e
Cirene suportava os maus-tratos sem emitir reclamação, opinião, suspiros ou
lágrimas que escorressem pela terra enunciada impavidez.
Tivera três filhos, dois a
menos que sua mãe, que a amavam e para quem ela emitia seu amor em melodias
saídas daquela plenitude antiga. Se expressava em cantigas de ninar. Os filhos
cresceram e saíram de casa, o algoz falecera e Dona Cirene continuava calada,
agora com o peso dos anos emperrando o abrir de sua garganta. Esperava a
chegada dos netos, para, quem sabe, voltar às suas canções maternais. Mas, eles
não vieram. Tornara-se velha. E doente, pois nada expressara durante o passar
dos anos.
Internaram Dona Cirene em um
hospital. E ela se sentiu abandonada. Fato consumado. Porém, contra fatos, só
sentimentos. Deitada em sua cama na enfermaria, não percebeu a transformação
chegando às suas cordas vocais. Estava velha, recebendo parcas visitas de seus
filhos, só, sozinha. E a raiva da vida inteira que passou enclausurada
transbordou pela sua boca, direcionada aos enfermeiros que a tratavam de
maneira cordial.
Dona Cirene se viu reclamando
dos procedimentos dolorosos com rispidez e gostou disso. Durante a visita
médica, determinava sua alta em alto e mau som. Começou a gritar com todos, a
impedir que os outros pacientes descansassem, a praguejar contra os que estavam
ali, velha maluca. Expressava em pedras atiradas tudo o que tinha calado no caminhar
dos tempos. Para diminuir o desconforto, os enfermeiros saíam de perto o mais
rápido possível. Mas, como que numa catarse constante, seus berros saíam cada
vez mais estridentes, nada a fazia parar. Dona Cirene era uma velha desbocada,
desagradável para as visitas na enfermaria.
Numa noite, ela jogou a bandeja
de comida no chão e gritou totalmente destemperada. Foi um tormento para os
funcionários do hospital. Gritou que ia embora dali, que não queria miserável
nenhum cuidando dela e que preferia morrer a estar junto de tantos burros. Contra fatos, não há argumentos. E, desta
forma, seu pedido foi atendido e sua última visão foi um travesseiro branco
empurrado contra seu rosto.