terça-feira, 31 de maio de 2016

Aços espelhados



Nesta vida de linhas pautadas
A gente se prende
A parágrafos caretas
E sinais de término

Bom seria continuar sem fim
Num olhar sem divisas
Sem parâmetros
Sem limites

Solto, soltinho
Num sobe e desce constante
Em que constam nossas costas
Cruzadas por nossos braços

Talvez este seja o limite aceito
Pelo desejo, já que o desejo
É o que leva à explosão
Das pessoas amantes

Em aços espelhados
E que se veem
Por um átimo
Um no outro


Que é a hora de se verem

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Contra fatos, só sentimentos.



Cirene foi uma criança caladinha. Não tinha muito o que falar, só observava mesmo. Crescera assim sem voz, guardando dentro de si a alvorada do mundo. Uma plenitude de emoções infantis, caçula que era, as benesses da família eram para ela.

Casou-se e mudou-se para o país dos espinhos. O noivo, quando passou a ser marido, se transformara em algoz e Cirene suportava os maus-tratos sem emitir reclamação, opinião, suspiros ou lágrimas que escorressem pela terra enunciada impavidez.

Tivera três filhos, dois a menos que sua mãe, que a amavam e para quem ela emitia seu amor em melodias saídas daquela plenitude antiga. Se expressava em cantigas de ninar. Os filhos cresceram e saíram de casa, o algoz falecera e Dona Cirene continuava calada, agora com o peso dos anos emperrando o abrir de sua garganta. Esperava a chegada dos netos, para, quem sabe, voltar às suas canções maternais. Mas, eles não vieram. Tornara-se velha. E doente, pois nada expressara durante o passar dos anos.

Internaram Dona Cirene em um hospital. E ela se sentiu abandonada. Fato consumado. Porém, contra fatos, só sentimentos. Deitada em sua cama na enfermaria, não percebeu a transformação chegando às suas cordas vocais. Estava velha, recebendo parcas visitas de seus filhos, só, sozinha. E a raiva da vida inteira que passou enclausurada transbordou pela sua boca, direcionada aos enfermeiros que a tratavam de maneira cordial.

Dona Cirene se viu reclamando dos procedimentos dolorosos com rispidez e gostou disso. Durante a visita médica, determinava sua alta em alto e mau som. Começou a gritar com todos, a impedir que os outros pacientes descansassem, a praguejar contra os que estavam ali, velha maluca. Expressava em pedras atiradas tudo o que tinha calado no caminhar dos tempos. Para diminuir o desconforto, os enfermeiros saíam de perto o mais rápido possível. Mas, como que numa catarse constante, seus berros saíam cada vez mais estridentes, nada a fazia parar. Dona Cirene era uma velha desbocada, desagradável para as visitas na enfermaria.


Numa noite, ela jogou a bandeja de comida no chão e gritou totalmente destemperada. Foi um tormento para os funcionários do hospital. Gritou que ia embora dali, que não queria miserável nenhum cuidando dela e que preferia morrer a estar junto de tantos burros.  Contra fatos, não há argumentos. E, desta forma, seu pedido foi atendido e sua última visão foi um travesseiro branco empurrado contra seu rosto.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Feijão



Eu pensei que tinha deixado meu chapéu ao lado do Tibira, mas não... Como vou fazer agora para juntar as esmolas do semedão diário? O Tibira não consumiu com ele.  Foi aquela jeitosa da rua de cima que me deu o chapéu e me é de boa serventia, o cristão não pode pregar os olhos um instantinho que já vem um sete-pele pra acabar com a paz do pobre. Pelo menos, o semedão já tava aqui no bolso da japona. Tibira nem latir, latiu. Deve ter sido o vento que levou o meu chapéu pra conhecer outros pensamentos talvez um pouco mais arrumados do que deste velho combatente ainda em prumo.
Vou contar agora todo esse semedão, mas tá forte esse vento, as pratinhas ficam, mas estas notas amassadas podem sair voando nessa onda cheirosa do feijão da Janira Rabuda que ainda deve ter apesar do adiantado da hora. Quatro e cinquenta, cinco. Agora juntando essas pratinhas vamos chegar aos sete e cinquenta do pê-éfe do bar do Ataulfo. Ah, Janira... Vou comer teu feijão hoje de novo. Bem misturado com o arroz e a farinha. Isso é que importa. O de resto, nem sei. Se for galinha, dou o osso pro Tibira. Se for porco, também. Carne assada, separo um pedaço pra ele. Mas, seu feijão, Janira, seu feijão é todinho meu.
Tem dias que o semedão é senumdão e eu suporto a fome até a noite. Mesmo há três anos mendigando, ainda não consigo dormir de estômago vazio.  Costumo ir até as lixeiras perto das lanchonetes mais famosas e reviro. Como os restos. Quando não acho restos, como o papel dos sanduíches. É bom porque aí eu cago embrulhado no dia seguinte. Na rua mesmo. De preferência na rua em que botaram flores para vender e tiraram os mendigos que lá estavam. Espalharam a gente pelo bairro. É que concentrado fica mais feio. Quando é um ou outro dá pra virar a cara e fingir que não está vendo. Mas, uma colônia de mendigos, a prefeitura teria que tomar alguma medida. E tomou: botou um comércio de flores no lugar em que estávamos e escondeu sua omissão e incompetência.
O que tenho aqui são nove reais. Se o Ataulfo estiver de bom humor ainda posso tomar uma branquinha. O dia foi bom. Vou aproveitar e olhar debaixo das rodas dos carros para ver se meu chapéu não voou para lá. Tem que ser antes de comer, porque depois desse feijão dá uma preguiça...


sexta-feira, 13 de maio de 2016

Muito

Eu dei pra ele
Já fui crime, agora sou gozo
Beija-flor provoca terremoto
Espraiado tem seus requintes
E a chuva não para

Desço o rio que me abarca
Pedra de poder cura
A natureza é bela
E ninguém tá muito afim de me ouvir

Gosto de marias-sem-vergonha
Coalhadinhas na beira da estrada
Simplicidade custa caro
E vocês pedem muito de uma pobre marquesa

Moto-rápido, moto ciente
Nas encostas de uma ressaca
A descida é para o alto
Sem pressa, sem curvas
E o branco-pax vem em sons

A roda da fortuna gira por completo
Felicidade é constante
Comprei muita pipoca
E o que acaba aqui
É justamente um filme com final feliz









segunda-feira, 2 de maio de 2016

Ah...


Eu te vejo assim, atravessando a rua, meio que na minha direção. Sim, você tem só os cabelos de cima grisalhos, os dos lados estão curtinhos, mostrando o quanto você é descolado. E você vem na minha direção, olhar fixo no meu sorriso. E me encanta com as promessas escondidas no seu sorriso.

Ah… se você me perdoasse… eu lhe escreveria um poema e publicaria nos nossos lençois. Se me perdoasse porque enxergo em você apenas promessas e a inspiração para algum texto suscetível a suspiros e toques solitários.


Me perdoa, vai. Me perdoa por eu seguir em frente sem olhar para trás.