segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Acelera


É essa pasmaceira que eu não tô aguentando muito, não. É muita linha reta.  No início, há dois anos, fiquei todo satisfeito, me achando o cara, melhor que os meus colegas que ficaram pra trás, lá na Praça Sete. Mas, agora eu tô como? Tô achando essa direção certa, duas horas só parando em sinais de trânsito e estações marcadas uma chatice só.
            São quase 30 quilômetros da Alvorada até Pingo D’Água. Tô há um ano neste ramal. É muita linha reta. O fiscal nem pra me botar no Alvorada-Galeão, que eu sei que tem curva e trânsito ao lado pra distrair a cabeça. Até o Pingo D’Água é só mato. Não tô aguentando.
            Esse mato todo me dá umas ideias... Pode ter sido coisa da Eliane. Foi ela que botou na minha cabeça o plano de ser piloto de BRT. Eu tava há tanto tempo na 434, Vila Isabel-Leblon. Muito antes da gente se ajuntar. Acho que já fazia uns dez anos. Era bom jogar meu carro barulhento em cima dos barbeiros arregados. Tinha a conversa macia das princesas que sentavam no meu motor quente pra combinar uma cerva depois de correr a última. Correr mesmo, tá ligado, a última viagem a gente faz voando, hahaha, os passageiros que se segurem mesmo, o que a gente quer é entregar o carro pro maluco seguinte, depois de contar o dinheiro das passagens e a quantidade de riocard que passou.
            Mas as minas, as minas, que falta que eu sinto. Que falta que eu sinto das cervas ali mesmo no Três Alves da Praça Sete, depois de largar. Dos beijos traíras com gosto de cigarro e cerveja e churrasquinho de gato. Das conversas sobre os arranhões na lataria e pontos na carteira. Acho que tô com quebranto de tanta saudade.
            Como foi que Eliane conseguiu me convencer eu não sei, porque até do calor nos engarrafamentos na Nossa Senhora de Copacabana eu gostava. E eu sei que só fui contratado pelo BRT porque não tinha pontos na carteira. Também me saí bem na prova prática e teórica. Mas ela me convenceu muito fácil. Deve ter amarração nessa história.
            Eu sei que até o ar-condicionado desse BRT tá me irritando, meus dedos ficam gelados. Queria poder subir minha calça preta de tergal até os joelhos e acelerar forte três vezes para espantar a madame no honda fit da frente. Queria sentir o suor escorrendo pela minha testa e beber minha água na garrafa pet enquanto faço aquela curva depois do Santa Bárbara e ainda assim, segurar aquele volante trepidante com força. Tudo isso sendo filmado pela gata sentada no meu motor.
            Não vou nem precisar ir na Mãe Candinha: se tinha amarração, já tá desfeita, sou caboclo forte. Vou dar uma ligada pro Josué, aquele supervisor parça pra saber se dá pra eu voltar. 434 de novo, muitas curvas, calor e aquelas minas sentadas no meu motor: vai tá tranquilo, vai tá favorável.







sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Estou bem



O sol me desperta, com seus primeiros raios tocando meus pés. Observo como a claridade alcança o canto extremo da parede, onde uma aranha calma agradece o ouro transformado em sua teia.
Uma diagonal de luz preenche minha vida nesta manhã. Posso contar com meus pés iluminados para seguir em frente. Entoo o Gayatri Mantra com toda força e o maior otimismo que uma pessoa possa reunir. E vou: café, tapioca, banho e rua.
E é só dentro do ônibus, depois de conseguir um lugar sentada, que me permito pensar no que não fomos. Uma professora de Inglês dizia que os lugares em que se daydream começam com b: bed, bath and bus. Eu só me permito sonhar acordada dentro do ônibus quando me sento, afinal, não vou me martirizar sendo amassada em pé. Então penso em tudo que eu gostaria de ter vivido com você. Penso naquela vez que você contratou aquele professor para me ensinar como é que se engana uma pessoa. E me lembro de tudo que ele disse e de como ele me enganou. E de como você me enganou. Da sua traição. Do muro em que você se plantou. De como não me preservou. E realizo quem é você realmente e como meus pés são iluminados e conhecem o caminho.
A promessa desta aurora de hoje foi bem apreendida. O sol me confidenciou que novas histórias esperam quem se abre e observa seu mover na abóboda azul-claro, algumas vezes manchada por nuvens brancas. É que na hora do meu almoço eu sempre olho para o céu e agradeço ao sol por afastar o frio do ar condicionado da minha pele. Ele é meu oráculo. E através dele decidi que hoje é meu dia de sorte.
Fico parada como se fosse atravessar a rua, só tomando sol. Não permito que o Chicabon derreta. Talvez alguém esbarre em mim. Se não esbarrar, também não importa. Hoje é meu dia de sorte. Não tenho nenhum sofrimento atroz, nenhuma paixão desmedida. Estou bem.