sábado, 25 de novembro de 2017

Conforto

Conforto


Conforto. Eu só queria conforto. Queria um lugar fora dessa luz branca, fria, incisiva como uma velha rancorosa. E o olhar desperto se assombra com a rigidez dos gemidos de quem está ali e não pode sair. Em cada quarto de hospital se encontra uma vingança dos corpos . Uma retaliação. Lei de Talião.
Aos médicos cabe a tentativa da não execução da desforra. Porém, os corpos são inclementes e trabalham até extinguirem os detalhes da Lei do Retorno aplicada empiricamente. A doença apodrecendo tecidos ainda úmidos e pegajosos, mostrando-se a mais honrada canibal dentre os civilizados. E apenas me resta resistir corajosamente, para que o banquete seja o mais nutritivo para esta vitoriosa combatente.
Não me pouparei ante esta grande inimiga. De tudo lhe darei: indolência, mesquinhez, violência, pequenez. Traição. E os amigos hedonismo e hipocrisia. Também a coragem de assumir tudo publicamente (creio que é com esta que a doença se fartará). Tudo que me restou deste campo de Marte em que vi os anos passarem. Não me vejo pronto para o conforto. Me enxergo apto para este incômodo personificado numa coceira que só existe nos circuitos elétricos do meu cérebro. É que a sensação acolhedora do meu velho par de sapatos de camurça marrom não é mais simétrica.  É uma sensação mórbida, a única a me confortar diante da notícia do enterro da minha perna direita.
Perdi primeiro o dedinho para uma ferida necrosada, em seguida o pé. O hospital teve que se haver com eles. Mas, a perna não. A perna foi sepultada em um caixão de criança pequena. Lhe faltaram as flores. Em lugar do choro houve a constatação, a estarrecedora certeza de que não há piedade em um corpo que se vinga.


E a morte não tem pernas curtas.

sábado, 11 de novembro de 2017

Cílios espessos

Cílios espessos

Onde havia cílios espessos agora existe breu. A escuridão se aproximou sorrateiramente, primeiro uma brancura na íris se apresentou aos poucos. O oftalmologista não foi consultado. E, como, enchente, a brancura conquistou o globo ocular.

Glaucoma devastador. Eles disseram, sem trazer luz alguma para aquele fim de túnel. Irreversível. Da forma mais cruel, perdi minha visão. Da forma com que lidei com quem sou. O negro se fez através do branco absoluto nas minhas retinas. Pressão arterial nas alturas, o descontrole interno de um corpo.
E, por fora, a necessidade absurda de controle dos espaços vazios.

Agora não mais conduzo a mim. Sou conduzida. Até mesmo pelos espaços que não encostam em minha pele, na relação tátil que agora tenho com o que está fora. Agora sou alguém castrada de seus impulsos. Devo criar uma disciplina que suplanta o corpo de outrora. Devo abraçar um preparo psicológico que sustente o preparo físico de toda a extensão da minha pele. Conquistar um autocontrole em relação à luz que não mais se faz presente.

Sou um ser sensação, um ser pele, um ser couraça visual, um ser que viu algo grande demais e que agora somente lhe resta escutar e tocar o grande. Com olhos injetados enxergo o dentro que sou, com pêlos arrepiados enxergo o fora que é. Olhos sem rímel. Cílios finos e claros.

Sou forma e sensação agora. A imagem, a estética que não me conduz, mas me guia, vem de pequenos brilhos na noite que se instalou nos meus olhos. Sou tato e audição. Sou aquela que se enxerga agora.


Stella Arbizu, 11/11/17