sábado, 17 de dezembro de 2016

O que você fez do que fizeram com você?



Muitos seguem a vida procurando a cura para suas dores, causadas pelas inquietudes ou por processos de perda que a existência neste plano material nos impõe. Quando se pensa em se falar o que vai dentro, tanta filosofia barata é lembrada para explicar a dor que ainda está lá, desde tempos antigos. É o caso de “o que você fez com o que fizeram com você?”.
            Esta máxima norteia o caminhar daquele que já encontrou a cura. Aquele que está desperto. Tudo o que foi feito de suas escolhas depende exclusivamente deste caminhante que teima em buscar o equilíbrio. Sim, a vida é dura, porém encontre-se como determinante da sua senda, sem culpar o outro pelas vicissitudes surgidas.
            O plano superior espera que nós, humanos, nos reencontremos com a própria partícula Eu Sou interna residente no macrocosmos que somos. E que a conexão se faça ainda nesta existência, porque nosso planeta urge em evoluir. Se cada ser humano compreender a magnitude da consciência de quem é, muito terá feito para alcançar os degraus iniciais desta trilha de ascensão a um existente melhor. O Eu Sou aguarda que realmente sejamos: mais conectados e mais solidários. Sim, porque a solidariedade fala da compreensão de que o outro não tem culpa no que você fez com o que fizeram com você. Conhecer sua estrada interna liberta e traz paz. E liberta o outro de um fardo que não lhe cabe.
            A busca do autoconhecimento é o ponto de partida para a escadaria da evolução. Tratar-se espiritualmente é o ponto seguinte, porque através do espírito vem a verdade. E a verdade exige que sejamos honestos e preocupados com o outro que seremos ao galgar um degrauzinho da escadaria. Ser cuidadoso consigo resulta em ser com o outro que divide a vida conosco, que está ao nosso lado, como amigo ou antagonista, para que possamos crescer.
            Buscar a verdade é a tarefa do guerreiro, é a proposta de quem procura se curar conscientemente. Servir ao outro é a batalha do caminhante. E encontrar a vitória reside na vontade e na fé do ser humano triunfante.




domingo, 11 de dezembro de 2016

Paladina



Eu conheço. Conheço uma pessoa que passou por todas as etapas da evolução das civilizações elétrica e eletrônica da humanidade. Sim. No quintal da casa dela, uma mansão no Flamengo, se enterravam pedras de gelo com serragem para tentar manter a temperatura baixa do gelado de goiaba ou de manga feitos nos verões de sua infância.
A gente consegue perceber a dimensão da vida dessa mulher que viu chegar à sua casa o primeiro refrigerador quando tinha seus catorze anos. Naquele momento, dançava valsa com seu avô (eram interrompidos com frequência para dar corda no gramofone), já treinando para seu début. E, agora, conhece tudo e o mais que cabe no hoje. Ao olharmos para ela, percebemos como ser é algo que se pode medir no interno, expansivo lugar que cabe no peito.
Fácil é encontrá-la, os familiares sempre dão boas notícias.
Não, eu não vou dizer que ela tem perfil no Facebook ou que escuta Charlestone no Spotify. Mas, ela ainda está viva.  Eu digo que ela manuseia o tablet para ver fotos dos bisnetos no colo dos netos. E vai passando o dedo na tela sem pressa. De vez em quando fala:
- Printa esta para mim. Vou colocar no meu toucador.
Ela é dona do Tempo, paladina de uma existência longa e real. Seus amigos já se foram, contemporâneo só o passado. Aliás, o presente também é seu contemporâneo. O futuro não, ela sabe que suas chances são reduzidas no caminhar para frente. Os joelhos não respondem mais a seus comandos, porque seus joanetes evidenciam a artrose do seu corpo. Quanto à alma, esta permanece jovem ao aceitar a perenidade da matéria.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

O som da magia



O som da magia não está apartado de mim. Meu ouvido absoluto vibra com as ondas emanadas daquele transformar. A magia canta o seu bem, meu bem; e desencanta o seu mal abissal. Ela lidera os maneirismos, as ferramentas e os chapéus de infinito. Protege enquanto eu ouço a implosão de arranha-céus e o tilintar das pinças daquele caranguejo que olha para a Lua.

A magia também é absoluta, meu bem, assim como fins de ciclo devem ser admitidos de forma cabal. Os vidros espelhados dos arranha-céus me convidam a mirar aquele vale ancestral em que colho estilhaços regados com chuva de estrelas. Escuto o som que emitem: crepitar dos tempos que querem nascer.


Hoje eu rebento em notas musicais. Canto naquela esquina em que não me encontras, a sinfonia interrompida de uma junção. Ouço a voz dos aplausos sincopados e toco a vida em frente. Algo me diz que meu instrumento não desafina mais.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Reflexão.

Anistie meus erros.
Eu lançarei ao mar
Os maços de tristeza
Que trouxestes com o golpe
Que me derrubou

Bloqueie minha inércia.
Teus atos estão
Depositados
Naquele paraíso
De mentiras

Talvez em Maricá
Possamos ser felizes
Durante o superfaturamento
De uma alegria fraudada

Diante da licitação
Do meu coração
Minha tornozeleira
Ainda grita

E me faltam forças para ouvir
O barulho das varandas e
A revoada de tucanos
A devastar aquele pau-Brasil.

(calma. eu mesma arbitro meus conflitos.)


sábado, 19 de novembro de 2016

Quero.



Não. Não quero apenas sinais.
Quero o encontro
da água do rio nas pedras.
Quero a calma do rio
que se entrega ao lago,
que refresca o corpo e altera a alma.

Quero coisas bem feitas
que respeitem lugares sagrados,
como sagrado é o meu eu,
lugar do real, berço de luz,
balanço de correnteza.

O que eu quero é
a saúde do encontro,
a solidariedade ao outro,
já que o outro não me coloniza,
mas guarda a sabedoria do querer bem.

Quero uma clareira aberta,
uma fogueira acesa,
o crepitar de chamas futuras
alimentadas por brisas suaves.


O que eu quero é o querer mais que bem-querer.



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Cláusula



Sem catarses, sem revoltas.
Estabeleço nossa cláusula de barreira
naquele contrato que assinamos
com o sangue de nossas horas.

Ergui um muro de medos,
dor do lado de lá
(há um protecionismo
onde perfurações resultaram em crateras)

Quedas imprevistas inexistem,
concreto duro, vergalhões de certezas
e uma história em cima do muro

a confirmar resoluções.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Jogo



Gosto tanto do Vinícius quanto
do Drummond:
um soneto me lembra esquema tático
de onde se rola a bola
num jogo com mais gente
junto.

Porém a poesia
não precisa de juiz:
campo aberto,
rede furada,
cardume de gols.

Várzea ou Camp Nou ou
Maracanã ou Moça Bonita
no ginásio da escola:
a professora aprontou um sarau,
talentos descobertos,
e uma grande área livre.


(o treinador sempre fala para passar a bola)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Triângulo



    Hoje encontrei um velho amigo. A cor da tarde era de um dourado como a do chope com o qual brindamos à nossa saúde. Impossível não gravar aqueles matizes na retina. Fiz questão de gravá-los na retina do parceiro que se encontrava à minha frente e à frente daquele pier povoado de passantes juvenis como a tarde. Eu me sinto assim: juvenil. Este é um estado difícil de se disfarçar... juvenil... Poderia ter pego qualquer bicicleta ou skate e me divertido sozinho por toda a orla. Mas sozinho é uma condição que não habita mais em mim.
   Voltei o assunto para nossas tardes de verão, na anterior adolescência, quando, mais tarde, pudemos dormir na praia depois de entornar num luau um garrafão de vinho barato. Falei das putas que comemos, do Nense saindo da lanterna, na vã esperança de disfarçar a presença dela, ali, inteira, como ela nunca poderia estar, somente estaria nos meus anseios.
   A cada gole de chope eu engolia um dos suspiros que teimavam em sair quando eu me distraía e, calado, me dava conta de que um homem de 1,90m também suspira.
   Até que depois de pedir mais uma rodada, meu velho amigo perguntou quem é ela. Ela. Ela é quem não pode ser. E um pouco surpreso, totalmente aliviado, sinceramente aborrecido pela sensibilidade do meu amigo ter sido desperta e sem ter notado que eu é que estou dando muita bandeira, eu disse:
 - Ela não existe.
 - Ah, num fode!
 - Não existe ela!
 - Você vem falando de luz dourada e não tem mulher no meio?
 - Pôrra, eu curto fotografia! A gente não se vê há tanto tempo que eu nem sei sobre sua aliança dourada aí e você não sabe nada sobre as minhas fotografias.
 - Não enrola... quem é ela?
 - Não tem ela, cara!
   Se eu expus sua presença jamais revelaria seus modos, seu andar, seu hálito. Meu amor por o que temos é demasiado cuidadoso para que eu o compartilhe com alguém mais. Mesmo sabendo que ela se nega a um novo encontro, minha insistência não cede, nem seu desejo refreia.
   Se ela expôs minha presença e revelou meus modos, meu nome e meus hábitos e, pior ainda, se caminhos antigos voltaram a se cruzar, bem fiz eu em negar sua existência.
   Se ela expôs a origem da jovialidade renascida, após anos de convívio rotineiro, ela a expôs resplandecendo dourada na retina de quem pôde vê-la.
   Se ela pagou o preço dessa exposição, se ela desestabilizou uma união com filhos, a mim, só me resta aguardar, só me resta a espera de um sorriso cúmplice.
   Por isso, com o sol se pondo, pedi a conta e fui embora assobiando.


terça-feira, 25 de outubro de 2016

Teimosia



Me doem a teimosia das
mulheres incansáveis e
a densa condição de
ausência de mimo a
si mesmas

Talvez um pouco de
solidariedade autóctone ao
país que não delimitaram
ainda
as fizesse latifundiárias de
um ser acompanhado

(quem é mais próximo que seu eu?)









sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Um poema me atirou à mesa.



Um poema me atirou à mesa.
Não exigiu papel ou lápis,
quis sim que eu me fizesse nua
de pudores e preconceitos
- mas para escrever também não se precisa deles –
de mim ele queria
uma lauta trepada.

Abriu caminho com um travessão
e foi conversando com meu interior,
no ritmo dele,
eu devolvi suspiros,
me deixei arrebatar
- não é todo dia que te levam à mesa assim –.
E não havia saída,
só idas e vindas,
ideias trocadas
por poema e possuída e
possuído e poesia
pois eu quis virar poesia,
porque quando aguei,
eu gritei rimando,
gritei, mas gritei baixinho
bem no ouvido do meu poema ele.


Foi mesmo uma lauta trepada.

sábado, 15 de outubro de 2016

Mãe

Tão irritante
É te ver assim desatenta
Quanto o fato de que
Um dia você se irá
Antes de mim

Ficarei inerte
Na sua falta
Sem rumo ou
Orientação que me acuda.

Seu jeito exige de mim
Que seja um crustáceo
Num novo exoesqueleto
A deixar este ser estranho
E viver num lar macio
Dentro de mim

Sem você eu sou estanque.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Da luz do sol



Da luz do sol jorrando direta sobre as nossas existências explodem som e calor para impulsionar a vida para fora. O vapor do asfalto é um desafio, um acinte, um inimigo formado por um fenômeno ótico. A luz. Lá fora.

Mas, quando a luz do sol vem quebrada, quando ela, mesmo sendo a do meio-dia, resolve entrar por sua janela e se depara com sua cortina de renda, ela resolve se abrandar e presentear-lhe com um requinte de matizes do branco que vão passando pelo marfim, pelo nude até chegar ao bege. O bege.

Porque a luz, suave, se molda, se encaixa, colore reentrâncias, suaviza penumbras e seduz. Seduz seu corpo, sua mente, sua alma, seu espírito. E há calma, há responsabilidade e consciência nesse jogo de luzes. No palco do seu quarto, sedutora e seduzido são os astros do show, brilham.

E a plateia observa enlevada.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Inhaúma.



Estava na Avenida Automóvel Clube, que é a mesma do shopping center onde levo minha família para almoçar aos domingos, dirigindo atrás de um rabecão. A bem dizer, o rabecão parecia um jatinho de tão velozmente que era conduzido. O motorista não respeitava sinalização, fechava os outros carros e ultrapassava perigosamente. Parecia que o defunto estava com pressa, assim, com medo de chegar atrasado ao próprio enterro. Eu imaginei que este seria no Cemitério de Inhaúma, que é o campo dos mortos mais próximo daquela região.
            Até que, em um cruzamento, o caminhão que vinha velozmente não conseguiu frear quando o rabecão ultrapassou o sinal vermelho. O acidente foi espetacular. O carro da funerária foi lançado longe e capotou. E dois defuntos foram expostos quando seus caixões chocaram-se contra o chão e se desfizeram. O motorista se tornou o terceiro defunto. O cenário do acidente era inacreditável: dois mortos no chão preenchendo suas penúltimas moradas quebradas e outro ainda sangrando pelos ouvidos, no chão também.
            Quem passava tinha dificuldade para entender. Porém, populares chamaram o Samu, os bombeiros e a polícia militar. Na avenida, os carros paravam para ver aquela cena surreal e um enorme engarrafamento se fez, atrasando ainda mais a chegada das autoridades. Quando enfim chegaram, mais uma confusão foi armada. Eles não sabiam qual dos três serviços públicos assumiria a responsabilidade pelos mortos já nos caixões. O finado motorista, ainda quente, foi removido pelos bombeiros, já que a causa mortis tinha sido acidente de trânsito. A polícia militar tentava segurar no local os integrantes da equipe médica do Samu, que nada podia fazer, já que só havia restado dois mortos que já estavam mortos. Não queriam assumir a responsabilidade por quem já tinha um atestado de óbito para chamar de seu.
            O tempo passava e os cadáveres continuavam no chão, somente tocados pelos pombos que ainda faziam algazarra numa avenida tão trafegada. Os soldados da PM tiveram a ideia de procurar o atestado de óbito dos dois dentro do rabecão capotado. Quando um deles entrou no carro da funerária, seu peso o desestabilizou e este acabou tombando de lado com o PM dentro, que quebrou a perna naquele momento. Mesmo com este sinistro, o Samu não quis atendê-lo porque não queria avariar a cena do acidente para uma possível perícia. O segundo PM não sabia o que fazer, estava achando aquela missão complicada demais para seu entendimento. Acabou chamando seu superior, o sargento Calçada, e continuou estarrecido com o panorama tragicômico estabelecido naquela área tão próxima a um cemitério.
            O sargento Calçada demorou muito para chegar, porém, assim que o fez, entrou em contato com a central de polícia para que a funerária fosse acionada. O gerente da funerária chegou ao local, mas o Samu o alertou de que ele não poderia remover dois corpos do chão de uma rua porque não era uma autoridade pública. A lei teria que ser consultada. Como era domingo, o gerente não conseguiu encontrar o advogado da funerária, então sentou no meio-fio e chorou. Nada havia a fazer.
            O sargento Calçada deu ordens para que seus soldados desafogassem o trânsito da região que começou a fluir. E ficou dentro da viatura ainda avaliando que os familiares não poderiam localizar seus mortos porque eles já haviam sido liberados pelo Instituto Médico-Legal. O gerente da funerária parou de chorar e ligou para os familiares, seus clientes, que, exasperados, cancelaram os enterros.

            Os corpos e seus caixões ainda estão lá na Avenida Automóvel Clube, hoje, terça-feira, aguardando a sentença de um juiz que seja inteligente o suficiente para entender os trâmites desta situação inusitada.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Terral




Ser leme me orienta
nesta água que fluí
sobre a sua piscadela
numa mesa de poesia e arte

Um tubo perfeito
tremula
sobre um terral
incerto

Tempo de distâncias

Estar perto é
uma arrebentação que
nunca chega


Remar é preciso.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Dança

Sou metade louca do que já fui
Transpassava poros
Ria na cara pra depois cuspir no chão
Escorregava, saía dançando


Não que eu ainda não dance,
Não que eu não me canse
De estar enquadrada


É que agora a música
Toca mais baixo.

sábado, 27 de agosto de 2016

Baixinha



“E aí que a cigana que mora dentro daquela baixinha morena de cabelos pretos escorridos falou que eu ia encontrar uma nova parceira. Eu disse que não, porque gostava tanto da minha namorada, que a gente se dava tão bem. Não concordei com ela, sou desconfiado. Não gosto dessa coisa de oráculo, pra que saber do futuro? Mas, algo nos olhos da baixinha me chamou, talvez tivesse sido seu cérebro e a maneira alegre de viver que contagia quem está por perto.

A baixinha é confiante, me disse que meu instrumento é mesmo o Reiki, mas que o dela é o Baralho Cigano. E que meu dinheiro investido serviria para tomar algumas resoluções nesta vida. Mas eu sou desconfiado que nem um cigano velho que te olha misteriosamente nos olhos, te desvendando por inteiro.

E aí que ela acertou mesmo. Minha vida virou por uma nova paixão, uma mulher mais velha que eu, mas com tanta juventude na risada que me faz sentir o peso dos caminhos que percorri. Ao mesmo tempo, aquela gargalhada me renova, me enche de frescor e me faz ver que a vida é para ser vivida com quem a gente ama num encontro de almas.

O fato é que a cigana da baixinha me assusta. Eu a encontro nos lugares mais frequentados do nosso bairro e a cumprimento. Nossos grupos se congregam e às vezes me vejo sentado ao lado dela em uma mesa de bar. E sinto pavor, respeito e vontade de correr dali. Temo que ela me diga coisas como as que me fizeram mudar de vida. Temo seu olhar inquisidor. A baixinha aproveita a noite se divertindo, nem me dando atenção e eu fico tenso com o que ela possa ver dentro de mim. Existem pessoas que desvendam seus segredos no olhar.

Não relaxo. E ela ri junto com minha mulher e daí eu temo que minha mulher queira se consultar com ela e que surja um outro alguém em sua vida, assim como surgiu na minha. Criei uma fantasia que me diz que a cigana da baixinha é capaz de materializar o que lê em nossos jogos.

Até que ela me segura pelo braço e me diz que não está atendendo e que eu me tranquilize. Que o instrumento dela é o baralho cigano e que ele não está naquela mesa, naquele momento. Fico calado. E pensativo.

Como foi que ela sabia o que eu estava pensando?”



quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Cidade salgada

Outro polvo se aproximou
Ao me tornar enguia
Tentáculos se espalhando
Pela cidade salgada

Tinta preta nos muros,
O asfalto chocado
Com a avidez das ventosas

Cidade elétrica, cidade mar
E alguma água
A banhar desejos.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

CHAMADO EM CH


Você é chique.
Você tem charme.
Chá, chocolate ou chope?
Chope, noturnos em chope.
Chopin com chope?
Chopin com champanhe?
Chopin com conhaque?
Chopin numa choupana. Chuva forte favorece enchentes.
Debussy com o quê?
Debussy com saquê?
Debussy nos abraços.
Me debruço nos seus braços.
Seu peito, parapeito.
Seus olhos, minha vista.
E a enchente transborda pelos poros.
E assim se faz do charco vida.

sábado, 23 de julho de 2016

Nostalgias



Nostalgias
que não me analgesiam
do teu existir.

Nostalgias
que não silenciam
o bombear árido
desta seiva quente.

Nostalgias
que negligenciam
um pensar barato,
um ponderar rasteiro,

de uma dama nua de verdades nossas.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Terror



Estou voltando do trabalho, são dez e meia da noite. Pedi para o motorista do ônibus me deixar mais perto de casa e ele não parou onde seria mais seguro para mim.  Dois homens dentro de um carro seguem meus passos. Pode ser que minha identidade feminina não seja aceita. Pode ser que eu seja estuprada. Estou gelada, aterrorizada com o que pode acontecer comigo. Talvez esta seja mais uma história de terror neste mundo.

Meu filho fez 18 anos. De presente, lhe dei um carro potente. A juventude pede essas coisas. Mas, ele pisou fundo nas curvas da Lagoa Rodrigo de Freitas, perdeu a direção e bateu numa das árvores que há anos recebem porradas de carros potentes. Ele está sendo operado neste momento, seu crânio quase esfacelou. É possível que ele morra. Estou gelada, aterrorizada com o que pode acontecer com ele. Talvez esta seja mais uma história de terror neste mundo.

Em Nice, França, milhares de pessoas comemoram o Dia da Queda da Bastilha, 14 de julho. Um caminhão muito bem pilotado por um único homem atropela de propósito centenas de pessoas. Ele desce da cabine e atira contra as que ainda estão em pé. 84 indivíduos morrem. É uma ação terrorista, reivindicada pelo Estado Islâmico. Pode ser que as diferenças entre os povos nunca sejam respeitadas. É possível que o terrorismo no mundo nunca acabe. É possível que ações terroristas sejam executadas durante as Olimpíadas no Rio de Janeiro. Estou gelada, aterrorizada com o que pode acontecer conosco. Talvez esta seja mais uma história de terror neste mundo.


sexta-feira, 15 de julho de 2016

Húmus


       O sol está entrando pelo buraco da fechadura. Eles podiam abrir uma fresta, para que eu recebesse seus raios.
       Estou cheia de mofo. À minha volta crescem cogumelos, minhas lágrimas são seu orvalho, liquidez de espera.
       São 37 dias aqui neste cativeiro. Conto todos os dias, estalando os dedos dos pés. Ninguém escuta o barulhinho, nem meus gritos de socorro.
       Os fungos que nascem na minha pele seguem as veias do meu corpo. Só o sangue corre para algum lugar. Do húmus vem a humildade. Não restou dignidade para parar de implorar.

       Agora é esperar que a próxima lua cheia me ilumine novamente.  A esperança quase se esvaiu pelo buraco da fechadura como um elefante que o atravessava: a próxima lua cheia vai me banhar completamente. Do lado de fora. É que eu dei um nozinho no rabo do elefante.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Atropelo

Inverno é o que acontece
Quando o Verão atropela
A Primavera
O Outono se assombra:
O flutuar das folhas
Se perdeu em brisas marinhas
E o mar fica caramelo
Esperando um Equinócio
Proibido pela translação
Há quem diga
Que a Terra gira mais rápido
Porém, eu sei
É que ela está parada.

(nenhum continente é litoral)​

terça-feira, 28 de junho de 2016

Naïve




Ficou faltando dizer
que é por causa do inefável
que é por causa do intocável
que é por causa do júbilo.

Não é por causa da ametista
nem por causa da artista
tampouco por ser egoísta

É mais pela brincadeira
é pela flecha certeira
cravada naquele alvo
alvo, quase róseo, quase carmim.

É só porque sou a crédula
que regurgita uma fábula
que não traz nenhuma cédula
mas te concede medalhas.


E te tira do diário.



quarta-feira, 22 de junho de 2016

Gravidade



Para alguns, a gravidade é mais forte. São aqueles que não pensam que Stairway to Heaven foi feita para eles. Aqueles que sentem a dureza dos dias. Aqueles para os quais só há saída nos fins-de-semana. A quem nenhuma oração conforta. Nem relaxa.
            Há outros que cantam mais suave. Que dançam na roda da noite. Que flutuam em ares perfumados e boiam numa maré leve. Os que fazem de seus dias a luta da fé e da vontade uma luta vitoriosa.
            Baco se comporta de formas diferentes para cada círculo. A uns serve como um arauto do vício diário, trazendo dor e sofrimento para quem os rodeia. A outros propicia hedonismo e a leveza das comemorações. Escolha para chegar lá sorrindo ou se lamuriando.
            Abrir as janelas para a luz entrar primeiro e vê-la exibir as partículas de poeira dançando em seus raios ou até mesmo observar o sol na faixa diagonal estampada no asfalto pode vir a ser uma desaceleração do ritmo do mundo cão. Um olhar menos inquisitivo e mais amável transforma corações duros em gelatina de morango. Saborear uma profundidade vinda do sorriso, do brilho nos olhos e de uma gravidade em que se anda saltando. Bailar por dentro no caminho à subsistência.
            Há que se fazer a transformação da lida do dia-a-dia. Trazer o horizonte para perto. É a partir de si que a vida flui. Lembrar que mesmo neste mundo cão, se tem o direito de ir ao shopping calçando havaianas. Sentir-se livre.
            Faça sua mudança. E lembre-se que o mundo cão pode virar um doguinho. Só depende de você.

           

            

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O melhor dos mundos


Não há quem não tenha pensado, uma vez sequer, em qual seria o melhor de seus mundos. Mesmo na mente do mais cartesiano dos viventes essa ideia já foi vislumbrada, é certeza. Na minha, então, é constância, você pode constatar.
São inúmeras possibilidades para transformar este mundo no melhor deles, visto que a cronologia já é avançada e pensamento onírico se fez presente desde o berço. E para que este texto não se estenda, vou me ater no ponto que me fez ter vontade de contar para você.
Em um dos melhores mundos, eu não só saberia o que meus cachorros querem pelos olhares deles. Eles falariam. Ah, como seria doce. Imagine todo aquele amor do olhar deles em palavras... Imagine todos os cães do mundo falando do amor deles para os solitários. Imagine a felicidade que cobriria a Terra, na voz dos caninos. Afeto espalhado em sons. Não, não estou dizendo que eles parariam de latir. Adoro seus latidos de alegria quando chegamos, ou de reclamação quando veem alguém que não conhecem. Mas, eles teriam a chance de nos dizer em sons humanos tudo aquilo que nos oferecem em seus olhares derretidos de carinho.
Pense em seu cachorro respondendo para você que está linda com esta roupa e que hoje é seu dia de sorte no trabalho. Pense que este amigo vai te incentivar e te dizer que é para continuar a ter fé, porque as coisas vão mudar e sua hora de brilhar vai chegar, você lutou por isso e merece, siga em frente, não desanime. E, assim, você vai para a rua, para o seu dia, cheia de ânimo, e, como o sol, durante doze horas ininterruptas, brilha e brilha e brilha.
E quando à noite você voltar, pense duas vezes em lhe negar o passeio na calçada. Vocês dois merecem esse momento de cumplicidade. Ele quer novos cheiros. Quer também fofoca com outros cães, focinhos e ânus. Depois do passeio, você pode dar-lhe muita água, lave seu focinho e deixe que ele lhe dê muitos beijinhos. Retribuição é vocabulário deles. E, sim, você vai ouvir aqueles latidos de alegria, ver o rabo abanando pra lá e pra cá.
E vai ser bom ouvir também:
– Ei! Faz carinho na minha barriga? Eu gosto tanto...
Se não dá para ouvirmos a voz dos cães, que saibamos ler seus olhares. Porque é isso que eles nos dizem com seu amor incondicional de cão. Comece a prestar atenção em palavras pequenas e em seu significado: amor, cão, paz. Amizade e cumplicidade são maiores. É pra prestar atenção nelas também. Porque é o significado da vida que fica maior.


   


segunda-feira, 6 de junho de 2016

Mandacaru sem flor



É de uma tristeza sem par que eu falo
O cheiro da terra e da poeira seca
Que o sol castigava para nos atingir

As árvores tortas e o mandacaru sem flor
Reflexos do que éramos
Retorcidos no estômago e inférteis na dor

Só a fé inabalável contra tudo seco ao redor
Padre Cícero, diretriz em pousar os pés no caminho e
Ter força para levantá-los a criar um novo passo

Olhos no ermo da vida sofrida
Contínua em sofrimento, escassa de água
De um açude limpo e uma sorte melhor

Na cidade enfim, construções erguidas
Com meu suor e a seiva de um veio vazio
Estrutura do corpo e da luta ferrenha

O urbano abocanha a esperança
Em ter um barraco, um teto, um pouso
Decentes em gozo de um descanso pleno

Anos e anos na crença da vitória
Que não chega e aparta o sofrer para o horizonte
Em que nada nasce, em que a dor se agiganta

Saudade do sertão, do mandacaru sem flor
Das cabras tangidas e mortas sob a luz
De um sol inclemente onde eu era senhor

Volto pra terra seca, longe da cachaça
Que destrói a mim e aos meus sem pudor
Volto pro sertão e para a falta de tudo

Lá minha alma se enche de cor
Distante do cinza que domina o sul
Sertão onde o mandacaru talvez dê flor

É lá que o sertanejo crê que a morte certeira
É benção de Deus e alívio de um pobre
Que olhou a vida com fé e algum destemor.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Aços espelhados



Nesta vida de linhas pautadas
A gente se prende
A parágrafos caretas
E sinais de término

Bom seria continuar sem fim
Num olhar sem divisas
Sem parâmetros
Sem limites

Solto, soltinho
Num sobe e desce constante
Em que constam nossas costas
Cruzadas por nossos braços

Talvez este seja o limite aceito
Pelo desejo, já que o desejo
É o que leva à explosão
Das pessoas amantes

Em aços espelhados
E que se veem
Por um átimo
Um no outro


Que é a hora de se verem