domingo, 26 de julho de 2015

Para adultos colorirem


Estava todo mundo falando sobre os livros para adultos colorirem. Ela só tinha visto pela internet, vivia reclusa, numa região da cidade que parecia uma zona rural, de tanto verde que cercava as habitações. Gostava de cuidar do jardim, da horta e dos cães que preenchiam seus dias solitários. Além de sua forte participação nas redes sociais, é claro.
Havia sido uma escolha forçada este modo de vida. Pedira demissão da família em que nascera, após ter sido comprovada uma fraude no testamento de sua mãe que contemplaria a ela e seus cinco irmãos. Ela o havia falsificado para ficar com as joias e a aplicação em um fundo de investimento que rendia bastante. Quem descobriu foi uma sobrinha esperta, bancária, que tinha curso de grafologia e perícia de escrita manual. Mas o isolamento fazia bem a ela. Estava aposentada, tinha sido bem-sucedida na profissão, podia ficar a olhar os pássaros em seu jardim nas tardes preguiçosas e um tanto alegres, porque, nela, não havia sinal de remorso algum pelo que havia feito, em qualquer momento de sua vida.
Se divertia nas redes sociais, com seus diversos perfis falsos, de personalidades cativantes e cruéis. Só era ela mesma com os cães e o jardineiro, com quem gostava de recordar os tempos antigos da cidade do Rio de Janeiro. E havia comentado com ele sobre os livros para colorir para adultos, o que o deixou bastante interessado. Assim, ela resolveu ir até um shopping center para comprar para ele. Saiu um dia à tarde.
Na livraria, ficou encantada com os vários livros com motivos de flores para colorir. Presentearia sim, seu amigo, que poderia colorir os jardins imaginados por desenhistas, ele que era desenhista real de jardins belos e concretos. Porém, seu olhar foi capturado por um livro com o tema das mil e uma noites de Sheherazade. Imediatamente, seu desejo se acendeu. Abriu o livro com avidez, ficou decepcionada. Eram motivos árabes e não sensuais. Sua vontade baixou. Procurou uma caixa de lápis de cor e foi passear pelas prateleiras expostas. Mas, havia um display com livros para colorir para adultos, porém para adultos mesmo. O tema era sexo. O desejo a tomou. Folheou as páginas e se certificou de que era isso que queria. Imaginou que dali viriam muitas ideias enquanto estivesse colorindo aquelas orgias tão bem traçadas. Passou a língua nos lábios e pegou mais uma caixa de lápis de cor.

Pagou suas compras na livraria quase que satisfeita. Na volta para casa, as ideias já afloravam na sua mente. Abriu a porta de casa, deixou as bolsas no sofá, foi para o quarto, ficou nua e deitou na cama.

domingo, 19 de julho de 2015

A sósia

       
Eu estava andando por Pequim e me dando conta de que aquela nebulosa de pessoas poderia me invadir, me atravessar ao se chocar comigo em uma das dez avenidas que eu interpretei como o sentido Aterro da nossa Avenida Rio Branco. Três delas eram ciclovias, cada uma com ida e volta, repletas de gente, muita gente e eu, ocidental, me sentindo absurdamente ambientada naquele universo de olhos puxados e peles pálidas. O sentido Candelária repetia a quantidade de vias e gente e carros e ônibus e transportes e soluções inimagináveis para uma cidade latina e desorganizada. E eu, organizada estava em outras latitude e longitude.
            Perto do Ninho do Pássaro e do Cubo D’Água tudo era modernidade e rapidez. Os centros de comércio do entorno me deixavam tão ocidentalizada quanto quando tinha chegado àquela pérola do Extremo Oriente. A tecnologia se oferecendo como a última novidade, nada de rotina. A moderna Pequim é puro estímulo.
 Sua comida adocicada era um capricho que eu viria a entender quando me aprofundasse mais em suas ruas perpendiculares às grandes avenidas, contraste encontrado em poucos metros de caminhada. Nessas ruas, construções quiçá milenares abrigavam outro tipo de comércio e por elas caminhavam o mesmo povo chinês, porém com um tempo um pouco mais demorado, algo contemplativo para as vitrines tradicionais com os dizeres na vertical que tanto me seduziam. O ritmo asiático acontece numa batida mais perene, quase eterna. Sim, pode-se dizer eterna, tão eterna quanto o ouro que saiu das minas do continente e há quase um milênio domina os amplos edifícios da Cidade Proibida com suas mais de 980 construções desde a Dinastia Ming, na era de 1420. Ela foi construída para o lazer e abrigo dos imperadores e suas cortes.
E eu fiquei seduzida. E ainda mais em casa. O som daquela Pequim antiga me preenchia, como um gongo que finaliza um ritual, anunciando que tudo está bem. E, da dificuldade de encontrar um conhecido em um local muito populoso, resolvi encontrar uma sósia em Pequim. Essa resolução habitava em mim há algum tempo, esperando para eclodir em local apropriado e a China foi a pátria-mãe dessa sósia de uma garota de traços euroclássicos e pele rosada. Aquele tempo um pouco mais demorado da gente da Pequim antiga foi o alarme para a eclosão dessa crisálida. E a procura teve início.
Eu a procurei na farmácia especializada em medicina tradicional, com suas paredes repletas de prateleiras envidraçadas que armazenam os componentes dos remédios que serão manipulados. Há quem diga que se encontra até escama de dragão como componente. Essa gente mais contemplativa costuma se tratar dessa maneira, procurando os seguidores desta antiga filosofia detentora da saúde.  
Fui andando mais para dentro da Pequim antiga até me deparar com um ferreiro. Parei na porta e fiquei observando seu trabalho em uma ponta de ferro em brasa. Fogo e martelo. Enquanto o fogo dilata o ferro, o martelo molda. É uma boa profissão para uma sósia. Encontrei no passo da gente chinesa, naquela parte da cidade, uma tenacidade secular, que nenhuma revolução política foi capaz de abrandar.
Um mercado de hortaliças apareceu à minha frente, depois de ter andado por dois ou três quarteirões. Elas estavam expostas em grandes tábuas de madeira e os gritos dos feirantes chegavam aos meus ouvidos trazendo sua alegria e o frescor que as hortaliças exalavam. Havia verduras e legumes conhecidos no mundo todo e outros que não ouso repetir os nomes, mas que, de tão frescos, me fizeram reconhecer que minha sósia teria que ter esse frescor em relação à vida, brotando da terra a cada colheita.
Crianças correram em minha direção quando saí do mercado. Elas pediam algo que eu não entendi e, portanto, nada dei. Insistiram e continuei na minha negativa. Então, elas me deixaram, seguiram em frente, brincando, rindo, sem olhar para trás. O povo chinês é sábio desde pequeno. A sósia que vou encontrar na China também será.
E eu? Eu fiz o caminho de volta para o hotel, analisando se estava pronta, se seria ideal para o que minha sósia havia de esperar de uma sósia. Sentada na cama do quarto, ansiava pela ida à Grande Muralha, em Shenyang, para buscar solidez e permanência. Tocar em um tijolinho daqueles seria uma experiência transcendental.
Peguei um ônibus na manhã seguinte, para uma viagem curta, somente uma hora e meia até Shenyang. Uma estrada simples norteou a ida até a muralha, oferecendo imagens rurais rudimentares, com gado arando pastos e montanhas cortando o céu. Encantadora.
E lá estava ela, majestosa, imponente. Grande. A Grande Muralha. Não olhei para o entorno: subi de teleférico até seu topo. Diferente do que acontecia em Pequim, ali, falas em diferentes idiomas chegavam até os meus ouvidos e me fizeram crer em algo que traria um burilamento ao meu ser. Crer que deveria estabelecer relações de afeição com diferentes seres humanos, incluindo cada um, acolhendo cada um em sua excentricidade ou sua simplicidade, expandir o coração, alargando as artérias tal qual extensas eram as esquinas daquela muralha que se dividia e seguia pela China. Abrir o peito a ponto de poder ser vista do espaço, como a Muralha, a única construção humana que, com sua solidez, inebria os astronautas a contemplarem o planeta azul. É a força da ternura agindo com seu caminhar constante e sua atitude eficaz.
Essa crença chegou rapidamente, como uma flecha lançada por um arqueiro e atingiu meu cérebro mudando até mesmo minha intenção. A sósia que queria encontrar na China era eu mesma, contemplativa, tenaz, alegre, refrescante, sábia, solidária e, principalmente, que sabe amar. Amar doando, esperando somente um sorriso do próximo. Amar o amor do andarilho, do viajante. O amor que sabe que amar é o que basta e que talvez, ser amado nunca aconteça, mas dar amor é valioso.

Fiquei por duas horas no topo da Muralha da China, caminhando por ela, tocando em seus tijolos e reentrâncias. Tirei fotos das montanhas e sua vegetação exuberante e também dos detalhes da construção. Quando decidi voltar, desci de tobogã numa aventura deliciosa, sentindo o vento do oriente em meu rosto. Sim, posso dizer que fui feliz na China.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Eurípedes



Lá estava ele de novo, passeando sobre o muro de sua casa, pelas tardias horas da noite. Os cachorros alardeavam e ela acordava para saber o que se passava. Abria a janela, já com a lanterna em punho e apontava na direção dos focinhos dos cães. Divisava o réptil em seu balancear de equilibrista, e, marota, mirava a luz nos olhos dele paralisando-o, na intenção de admirar aquela beleza pré-histórica. Ficava poucos momentos assim, tinha dó do bicho, e o libertava, para paquerar o bailar da cauda no muro e permitir que os cães reiniciassem seu ladrar.
O nome dele é Eurípedes, decidiu. Um réptil de um metro e meio no seu muro é algo apaixonante e suas repetidas visitas a faziam sentir-se qual namorada aguardando serenata. A cantilena dos cães era sua serenata. Essas noites eram mais vibrantes. Nem se dava conta da hora, importante era a lanterna e a janela aberta.
Eurípedes chegava, desfilava até o pé de amoras, ficava durante algum tempo recebendo a brisa da noite em sua grossa pele pecilotérmica e seguia em frente para um destino desconhecido por ela, para onde sua janela não permitia ver. Mas, ela se sentia plena, pois sabia que o veria novamente, os cães cantariam para ela. Era outono.
As visitas de Eurípedes tinham a frequência animalesca, ora sim, ora não. Ela dormia calmamente, não havia preocupação. Outono, inverno, primavera. Ele vinha com seu caminhar lento por sobre o muro, enlevando-a com a altivez de um herdeiro de uma antiga dinastia. Amor.
Quando se percebeu apaixonada, fez de Eurípedes seu escravo. A lanterna em seus olhos permanecia agora muito mais tempo e ela ficava fixada naquele olhar paralítico, inerte. Ela podia ler naquele olhar algo feroz e manso, frio e cálido, distante e terno. Isso a inebriava. O momento em que o libertava trazia para si a própria liberdade, mas vê-lo ir-se sem olhar para trás causava nostalgia.
A Terra seguiu seu curso e o verão chegou. Calor, muito calor. Os cães pararam de latir à noite. Onde ela morava, havia muitas pedras, frescas e úmidas e Eurípedes não veio mais. Um quê de indolência se estabeleceu em seu quintal. Tudo parado. Menos seu coração que, de tanto bater acelerado, impedia que ela dormisse. Começava folheando as páginas de um livro. Depois mexia no celular. Passava para a televisão, que zapeava sem parar. Apagava a luz. Finalmente, pegava a lanterna e ficava acendendo e apagando, que nem vagalume na escuridão do mato. Nesse movimento, ela conseguia adormecer. Dormia um sono leve, ressonando baixinho, até aprofundar. Nas camadas mais densas, na hora mais pesada da noite, naquela em que o ser é realmente ele, ela sonhava. Sonhava com o lagarto. Via-se nua frente ao lagarto e ele seguia em frente em seu passo lento até desaparecer. Acordou calmamente, tanto quanto era o caminhar do lagarto.
O sonho a perseguiu por duas noites, numa manhã, ela pegou o computador e pesquisou seu significado: insatisfação das necessidades primárias do ser humano. Sim. Ela sabia disso. Ela tinha uma fome, sim. Mas, estava camuflada. Ela tinha fome de gente e se negava. Ela tinha fome de um homem, mas preferia estar em casa, sem nem esperar que ele batesse à sua porta. Preferia transferir seu amor para um ser de sangue frio a ter que se arriscar a se relacionar novamente.
Ela não saiu de casa. Ela não saiu da janela. Era verão e ela não foi atrás de gente. Esperou placidamente os dias passarem, ele vai voltar, Eurípedes vai voltar, pensava durante os meses que faltavam para o outono chegar. E assim aconteceu. A estação do ano mudou, e Eurípedes voltou. Em cima do muro.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

Análise


Saiu meio atordoada da sessão de análise. Foi uma sessão estranha. Tinha começado discorrendo como tinha passado a semana, sem nenhum percalço ou atropelo. Como papo de comadre. Mas, faltando pouco tempo para o término, um sonho que tivera brotara em sua mente. E ela o descreveu para a analista.
            Ela sonhou que estava na casa de seu ex-namorado, sozinha, pois tinha entrado com a chave que ele havia lhe dado e, subitamente, sentiu vontade de ir ao banheiro fazer cocô. Ela, que tinha prisão de ventre, contou que no sonho, sentiu um prazer enorme ao defecar. Quando levantou, olhou para o que tinha feito, era enorme, pegou e colocou na boca. Contou para a analista que tinha gosto de sêmem e que assim o sonho terminava. A analista ficou em silêncio durante um tempo e olhou para o relógio em cima da mesa. Já levantando para marcar a próxima semana, perguntou para ela se faltava muito para bater as metas que seu gerente havia implantado naquele mês e ela respondeu, bastante animada, que já havia conseguido e que agora buscava alcançar um patamar em que seria premiada, caso atingisse. A analista somente sorriu.
            Sua inteligência excedia bastante a média dos mortais, por isso estava tentando construir laços entre o sonho que contara e a pergunta sobre as metas alcançadas em seu trabalho, porém, a calçada estava muito cheia de pessoas com seus guarda-chuvas, ela precisava prestar atenção para não se machucar, porque tinha que ir até uma delicatessen comprar coisinhas. Iria encontrar suas amigas para uma noite de jogatina animada e boa conversa.
            Quando chegou, as meninas já estavam animadíssimas, o papo rolando solto, garrafa de vinho aberta. Não, o universo das conversas não se restringia ao assunto homem. Muita bobeira estava sendo dita, mais duas garrafas de vinho abertas e ela resolveu abrir um tubinho de patê que havia trazido. Colocou o patê em uma tigela redonda e o patê, ao sair do tubinho, ficou parecendo um cagalhão. Ela riu e o levou assim mesmo para a mesa, acompanhado de uma travessa de torradinhas, fazendo cara de séria. As amigas não notaram de imediato. Ela não tocou no monumento intestinal. A primeira ia se servir e ficou com nojo, recuou dizendo que tava parecendo um cocô e que não iria comer. Foi o suficiente para as outras três engrossarem o coro. “Ai, que nojo”, “ai, que nojo”, “eu não vou comer isso, parece cocô”.  E ela, escandalizada com tamanha frescura, pensando que tinha colocado um cagalhão com gosto de porra na boca e essas mimadas querendo jogar fora um patê caro para caralho, só por causa do formato. Resolveu se servir dizendo que era laboratorista. As amigas gritaram de nojo. Colocou a torrada na boca e falou que era para elas deixarem de ser nojentas. Nesse momento, pegou a espátula e mexeu o patê todo, desfazendo o formato do cocozão. Elas relaxaram, ma non troppo. O patê ficou de lado. Só duas delas comeram.

            Enquanto elas se divertiam, duas questões não saíam de sua cabeça: o que fazer para defecar tão bem quanto no sonho e se toda merda que desse acabasse em gozo, estava tudo resolvido na vida dela. Questões para levar para a próxima sessão de análise.